Aviação civil, proteção de dados e integração internacional

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A aviação civil, desde sua consolidação como meio de transporte de massa, tem sido fortemente marcada pela sua dimensão internacional. O transporte aéreo conecta países, economias e culturas em uma dinâmica que transcende fronteiras e impõe intensa cooperação regulatória.

Com a assinatura da Convenção de Chicago de 1944, que instituiu a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), firmou-se a compreensão de que a aviação não poderia prosperar de forma isolada, mas dependeria de padrões multilaterais de coordenação.

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Essa vocação transnacional, que por décadas se expressou sobretudo nas discussões sobre segurança operacional e responsabilidade civil, assume hoje novos contornos diante da crescente relevância da proteção de dados pessoais no cenário global.

As companhias aéreas lidam diariamente com grandes volumes de informações sobre os usuários dos seus serviços. Entre elas estão o Registro de Identificação de Passageiros (Passenger Name Record – PNR), que reúne dados do itinerário, do pagamento e até das preferências de viagem, as chamadas Informações Antecipadas sobre Passageiros (Advance Passenger Information – API)[1], exigidas pelas autoridades migratórias, além de dados adicionais, como os relacionados à saúde, que ganharam destaque durante a pandemia de Covid-19.

Esses dados são essenciais para o cumprimento de obrigações legais, para a segurança nacional e para a própria execução do contrato de transporte, mas o modo como são coletados, armazenados e compartilhados está sujeito a um emaranhado de legislações nacionais e internacionais, o que não raramente gera tensões operacionais e jurídicas que desafiam a indústria aérea.

No Brasil, a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018) trouxe novas camadas de complexidade. A lei estabelece princípios e bases legais para o tratamento de dados, assegura direitos aos titulares e impõe limites à transferência internacional de informações.

Companhias aéreas que operam no país, ainda que sediadas no exterior, estão sujeitas à LGPD, em razão de sua aplicação extraterritorial[2]. Isso significa que empresas estrangeiras que tratam dados de passageiros localizados no Brasil também podem ser responsabilizadas, o que gera desafios de adequação.

Ao mesmo tempo, a aviação civil é regulada por diferentes órgãos nacionais, como a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), a Polícia Federal, a Receita Federal e o Ministério da Justiça, todos com demandas próprias relacionadas ao controle migratório, à segurança e à fiscalização. A atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), autarquia de natureza especial, criada pela Lei 14.460, de 25 de outubro de 2022, em processo de consolidação, soma-se a esse cenário, exigindo coordenação institucional para que se evite a sobreposição de exigências e a insegurança jurídica.

O problema da fragmentação normativa e conflitos entre legislações nacionais e acordos internacionais não é novo no direito aeronáutico brasileiro. Em matéria de responsabilidade civil, por exemplo, os tribunais já afastaram limites indenizatórios previstos na Convenção de Montreal para privilegiar a proteção do consumidor, com fundamento no Código de Defesa do Consumidor[3].

Algo semelhante pode ocorrer no campo da proteção de dados, caso o Poder Judiciário adote uma leitura maximalista dos direitos assegurados pela LGPD em confronto aos compromissos internacionais assumidos pelo país.

Outro ponto crítico refere-se à transferência internacional de dados. A LGPD só permite esse fluxo quando o país destinatário oferece grau de proteção equivalente (art.4º, IV da Lei 13.709/2018) ou quando são utilizadas cláusulas contratuais padrão e mecanismos reconhecidos pela ANPD (art. 33, II, b da Lei 13.709/2018).

Como muitas jurisdições não contam com legislação comparável, companhias aéreas brasileiras podem acabar em uma encruzilhada: ou cumprem a exigência internacional e correm risco de descumprir a LGPD, ou cumprem a LGPD e podem ser penalizadas em outros países por não enviar os dados. Além disso, a ausência de regras claras sobre cláusulas padrão produz incertezas, podendo gerar responsabilização administrativa e judicial.

Há ainda o desafio constitucional. A Constituição Federal assegura, em seu art. 5º, X e XII, o direito à privacidade e ao sigilo de dados, e, após a Emenda Constitucional 115/2022, reconhece expressamente a proteção de dados pessoais como direito fundamental autônomo (art. 5º, LXXIX). Por outro lado, a realidade da aviação internacional exige que dados sejam compartilhados com autoridades estrangeiras para finalidades de segurança e imigração.

A tensão entre esses valores revela a necessidade de um equilíbrio que permita ao Brasil cumprir compromissos internacionais sem esvaziar a proteção de direitos fundamentais como os da intimidade, da vida privada e do sigilo das comunicações, núcleo duro de proteção dos cidadãos.

Diante desses dilemas, a busca de soluções se mostra necessária. No plano internacional, um caminho é a atuação do Brasil perante a OACI para estimular a criação de padrões multilaterais de proteção de dados, evitando que cada país adote exigências próprias que se sobreponham ou entrem em conflito.

No plano interno, revela-se relevante a articulação entre ANPD, Anac e órgãos de segurança, com vistas à construção de protocolos claros e específicos para o setor aéreo, capazes de conciliar transparência aos passageiros e previsibilidade às companhias. A aprovação de cláusulas contratuais padrão pela ANPD também parece uma medida viável, permitindo que as transferências internacionais ocorram com segurança jurídica.

Por parte das companhias aéreas, é necessário investir em políticas de governança de dados, treinamento de funcionários e mecanismos de compliance que garantam não apenas a conformidade com a legislação, mas também a confiança dos usuários dos seus serviços.

A transparência quanto às finalidades do tratamento de dados e o respeito aos direitos assegurados pela LGPD constituem instrumentos essenciais para preservar a relação de confiança no transporte aéreo e mitigar riscos de responsabilização, já materializados em sanções aplicadas a transportadoras em diferentes países[4].

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A aviação civil se define, em grande medida, por sua vocação transnacional. No Brasil, a conciliação entre a integração internacional e a proteção de dados pessoais é um desafio em aberto, que exige coordenação regulatória e cooperação internacional.

Se bem conduzido, esse processo pode consolidar o país como referência regional na proteção de dados aplicada ao transporte aéreo, equilibrando o respeito aos direitos fundamentais dos passageiros com as necessidades globais de segurança e eficiência. O futuro da aviação brasileira dependerá, em grande medida, da capacidade de harmonizar esses dois vetores, em um ambiente no qual a informação circula com a mesma velocidade que os aviões que cruzam os céus.


[1] https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/resolucoes-2012/resolucao-no-255-de-13-11-2012

[2] https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/direitopub/article/view/49261

[3]https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=6450365&numeroProcesso=1394401&classeProcesso=RE&numeroTema=1240

[4] https://www.gdprregister.eu/news/british-airways-fine/