Ausência de controles nos sistemas da Previdência aumenta fila do INSS

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A Previdência Social brasileira enfrenta uma crise tão grave quanto silenciosa: a falência sistêmica dos fluxos informatizados que regem a análise e a concessão de benefícios. O problema não está apenas no volume de requerimentos ou na falta de peritos, mas, sobretudo, na completa ausência de filtros lógicos, travas técnicas e controles básicos nos sistemas operacionais utilizados pelo INSS e pelo Departamento de Perícia Médica Federal (DPMF), desenvolvidos e geridos pela Dataprev.

Na última semana de junho, a Associação Nacional dos Peritos Médicos Federais (ANMP) foi novamente surpreendida com um caso emblemático do colapso dessa engrenagem. Um perito federal foi designado para realizar uma avaliação de incapacidade laborativa (espécie B31) de um suposto requerente com apenas 2 anos e 9 meses de idade.

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Isso mesmo: uma criança, sem qualquer vínculo contributivo, foi convocada para um exame pericial destinado a trabalhadores temporariamente incapacitados. A situação, por si só absurda, revela a fragilidade e a permissividade dos sistemas que deveriam assegurar a legalidade, a moralidade e a racionalidade da gestão previdenciária.

Não se trata de um evento isolado. Há meses, a ANMP tem alertado o Ministério da Previdência Social sobre falhas semelhantes. Já registramos, por exemplo, casos de segurados que, mesmo já amparados por benefícios ativos e com prorrogação judicial garantida, conseguiram protocolar novos pedidos que geraram, indevidamente, agendamentos de perícia.

Ou seja, o sistema não apenas ignora os critérios legais básicos como permite o retrabalho, o acúmulo desnecessário de tarefas e o desperdício de recursos públicos.

A ausência de travas sistêmicas é mais do que uma falha técnica — é uma disfunção institucional. Ao permitir que requerimentos sem qualquer respaldo legal avancem nas etapas administrativas, os sistemas da Previdência descumprem frontalmente o princípio da legalidade estrita (artigo 37 da Constituição), comprometem a moralidade administrativa e afrontam os pilares da economicidade e da eficiência.

A estimativa mais recente indica que mais de 2,7 milhões de pedidos estão atualmente na fila de espera do INSS. Quantos desses são legítimos? Quantos são frutos de processamento automático de demandas natimortas, que sequer deveriam ter ultrapassado a triagem inicial? A resposta precisa ser buscada com urgência, pois cada vaga indevidamente ocupada representa um cidadão ou uma família aguardando, muitas vezes em situação de extrema vulnerabilidade, por um benefício justo e legal.

Frente à gravidade da situação, a ANMP encaminhou duas representações formais. Uma ao Ministério da Previdência Social, exigindo a imediata reestruturação dos sistemas com implementação de travas que bloqueiem automaticamente o agendamento de perícias para menores de 16 anos, não segurados ou beneficiários já amparados por outros benefícios ativos.

A outra, ao Tribunal de Contas da União (TCU), requerendo auditoria operacional para apuração das responsabilidades, medição dos prejuízos ao erário e imposição de medidas corretivas à Dataprev, ao INSS e ao DPMF.

É fundamental destacar que a tecnologia não é, em si, o problema — mas o modo como ela tem sido negligenciada. A Dataprev, empresa pública responsável pelo desenvolvimento e manutenção dessas plataformas, falha gravemente ao não garantir a integridade lógica dos sistemas, deixando brechas que geram efeito cascata sobre a operação da Previdência como um todo. Em vez de apoiar a eficiência, os sistemas passaram a sabotá-la.

É preciso coragem institucional para enfrentar essa realidade. Enquanto os sistemas permanecerem alheios às normas legais e às boas práticas administrativas, continuará havendo desperdício de dinheiro público, crescimento artificial da fila, sobrecarga da agenda pericial e deterioração da imagem da própria Previdência Social.

A ANMP não se furta à responsabilidade de colaborar. Ao contrário: propõe, com urgência, a intensificação das reuniões com o Grupo de Trabalho previsto no Termo de Acordo de Greve 01/2025 para apresentação de propostas técnicas de reestruturação, com envolvimento direto dos peritos médicos federais na modelagem normativa. Ninguém conhece melhor a realidade da ponta do que aqueles que, todos os dias, lidam com os dramas dos segurados e as falhas do sistema.

Estamos diante de uma escolha histórica. Ignorar o problema significará perpetuar o caos e alimentar a desconfiança social. Enfrentá-lo com seriedade, por outro lado, abrirá caminho para uma Previdência mais justa, mais célere e mais eficiente.

A ANMP reafirma seu compromisso com a legalidade, com a boa gestão e com o serviço público de excelência. Que a tecnocracia se una à responsabilidade. E que a tecnologia volte a servir ao cidadão — e não o contrário.