Em 14 de dezembro, o Banco Central divulgou sua primeira consulta pública sobre o mercado de ativos virtuais. Esse mercado envolve um conjunto de relações econômicas em constante mutação, repletas de oportunidades de investimento e de potenciais riscos. A natureza sem fronteiras desses ativos e as dificuldades decorrentes para a aplicação de regras de direito tornam esse mercado uma montanha-russa. Dentre as várias preocupações do órgão regulador, as implicações relacionadas a momentos de crise são especialmente evidentes.
A tecnologia de registro distribuído não está confinada a espaços jurisdicionais. As formas de armazenamento desses ativos também variam e trazem grande complexidade para sua identificação e localização. Quando há episódios de insolvência, os holofotes se voltam para uma questão crucial: quais são os contornos dos direitos de propriedade sobre ativos virtuais, notadamente em momentos de estresse? Fazer valer esses direitos pode ser uma tarefa complexa. A resposta a essa questão é construída, em cada jurisdição, a partir de normas de natureza regulatória e de direito privado.
Episódios de crise vão muito além de histórias midiáticas envolvendo plataformas cripto, como o recente caso da FTX nos Estados Unidos, ou o episódio infame da Mt. Gox no Japão, em 2014. Estresses financeiros transcendem setores e atores econômicos. Diversas sociedades empresariais e pessoas físicas detêm a titularidade de ativos virtuais, e podem carregar empréstimos atrelados a valores em cripto. Há diversas discussões, inclusive, sobre como contabilizá-los.
Três são as áreas cruciais para reflexões sobre a intersecção entre criptos e solvência: (1) o tratamento jurídico de ativos virtuais, (2) a avaliação desses ativos, e (3) os desafios transfronteiriços próprios de cenários de insolvência.
Primeiramente e mais importante, considerar o tratamento jurídico de criptoativos em procedimentos de insolvência é caminhar por um complexo labirinto. A cada curva, surgem novas questões jurídicas. Em seu cerne, está uma pergunta-chave: ativos virtuais são, ou não, reconhecidos enquanto objeto de propriedade sob leis nacionais?
Em algumas jurisdições, como no Brasil, nos Estados Unidos, no Reino Unido e em muitos países da União Europeia, criptoativos são, ou tendem a ser reconhecidos por decisões judiciais, enquanto bens móveis intangíveis passíveis de aquisição. A implicação prática é a de que eles podem estar sujeitos a apreensão e distribuição a credores durante procedimentos de insolvência. No entanto, em outras jurisdições, o status jurídico pode não ser tão claro, notadamente naqueles países que não reconhecem bens intangíveis como objeto de propriedade por leis gerais e que demandam a promulgação de normas específicas para tanto.
Ativos virtuais, que compreendem tanto tokens nativos como ativos tokenizados, são bens intangíveis. Esses ativos não deveriam ser tratados juridicamente como commodities, mas sim como bens próximos àqueles protegidos por propriedade intelectual. Tokens deveriam ser passíveis de se constituir enquanto objeto de propriedade (seja ele representativo ou constitutivo de valor ou de direitos) e também de garantias contratuais (e.g., alienação fiduciária). No entanto, regras precisam ser promulgadas para tratar o modo específico de circulação e negociação desses bens, que ocorre por meio de técnicas criptográficas. Chaves e senhas são necessárias para exercício do controle desse bem, um conceito jurídico factual distinto da ideia de posse no direito brasileiro (ver Princípio 6 das guidelines em ativos digitais e direito privado do Unidroit).
É importante também afirmar que, do ponto de vista estritamente jurídico, está incorreto o ditado popular: “not your keys, not your tokens”. O direito preexiste à DLT e serve para “emoldurar” juridicamente relações econômicas tokenizadas. O controle de chaves não se confunde com a propriedade do bem. Ou seja, a transferência factual de tokens não implica necessariamente a transferência legítima de sua propriedade como, por exemplo, em casos de fraude ou furto. A qualificação jurídica não se altera e não tem relação com a capacidade efetiva de se restituir (ou não) esse bem a seu titular legítimo.
Outro exemplo é a custódia de ativos virtuais. A custódia não envolve (ou não deveria envolver) a transferência de propriedade do investidor para o custodiante, mas somente o exercício da guarda desse bem com as responsabilidades jurídicas correspondentes ao controle do ativo. Em caso de falência do custodiante, o investidor terá um direito pessoal ou real oponível ao intermediário, dependendo do grau de fungibilidade contratual ou regulatória desses ativos, algo em pauta já na primeira consulta pública do Banco Central.
No que se refere a procedimentos de insolvência, se ativos virtuais não forem considerados bens passíveis de se constituírem enquanto objeto de propriedade, torna-se incerto se integram o patrimônio do devedor. Da mesma forma, não estaria claro se criptoativos poderiam ser destinados a constituir garantia privilegiada para um credor (que envolve também o cumprimento de requisitos jurídicos conforme leis domésticas), ou mantidos sob guarda por terceiros. Em geral, a presunção é a de que, se os requisitos jurídicos para sua validade forem cumpridos, ativos virtuais de titularidade de um devedor integram seu patrimônio. Eles podem ser submetidos à distribuição para credores com as devidas distinções e implicações jurídicas quanto a créditos oriundos de pedidos de restituição, créditos concursais ou extraconcursais.
Em segundo lugar, a avaliação de ativos virtuais, notadamente de criptomoedas, é um quebra-cabeça intrincado, dada a volatilidade inerente desse mercado. Os criptoativos apresentam desafios na determinação de seu valor durante processos de crise, impactando o interesse de credores. Estes, ao fazerem valer suas garantias, têm a responsabilidade de obter o melhor preço razoavelmente alcançável. Geralmente, isso não envolve adiar a execução na esperança de valores mais altos. No entanto, a volatilidade desses mercados pode introduzir obstáculos significativos às partes interessadas.
O terceiro e último aspecto refere-se à cooperação transfronteiriça, que assume uma importância elevada no mundo cripto. Ativos virtuais operam em registro distribuído, o que significa que a blockchain não esteja confinada a uma única jurisdição. A complexidade quanto à armazenagem desses ativos aparece também nesse caso. Se em posse do titular (em armazenagem fria, por exemplo) e configurada fraude, medidas coercitivas atípicas (e intrusivas) poderiam ser acionadas por tribunais (e já foram usadas em outras ocasiões no Brasil). Se em custódia de terceiros, especialmente em plataformas no exterior, instrumentos processuais de cooperação internacional judicial podem se fazer necessários. Em todo caso, o ônus da prova da existência desses bens cabe geralmente ao credor.
Ainda, em cenários de crise mais complexos, múltiplos tribunais podem reivindicar jurisdição com base em leis domésticas. Por exemplo, tribunais ingleses sustentam que ativos virtuais estão localizados no local em que seu proprietário está domiciliado. Se tribunais adotarem abordagens distintas, há incentivo à arbitragem e partes interessadas podem iniciar procedimentos em outros lugares.
Em momentos de crise, as implicações jurídicas da titularidade de criptoativos são intrincadas e exigem conhecimento específico. Ainda que não sejam exaustivas, as questões relativas ao tratamento jurídico de ativos virtuais, aos desafios de sua avaliação e ao caráter transfronteiriço da tecnologia são especialmente relevantes. O cenário jurídico é ainda movediço e tende a influenciar o desenho de produtos e serviços baseados em DLT e o processo de tomada de decisão de investidores.
Nesse aspecto, para além de normas regulatórias (que venham a compor o arcabouço do Banco Central), reformas legislativas que tratem do direito privado das relações tokenizadas são bem-vindas. Espera-se que a Comissão de juristas designada para atualizar o Código Civil consiga endereçar esses e outros aspectos relevantes para a construção de uma economia tokenizada com maior segurança jurídica.