Há pouco mais de um ano, na noite após o primeiro turno das eleições presidenciais de 2022, fui a uma pizzaria que só faz entregas ou vende no balcão. Enquanto aguardava meu pedido ficar pronto, um motoboy desabafou para todos enquanto assistíamos ao Fantástico: “eu votava no Lula, mas meu pai me ensinou que ladrão deve ir para a cadeia ou morrer”, numa clara referência às acusações de corrupção que haviam recaído sobre o então candidato do PT e ex-presidente.
Justa ou injustamente, lógica ou ilogicamente, é assim que pessoas que integram o chamado precariado — sem direitos trabalhistas, à mercê da economia dos aplicativos, quiçá morador de áreas dominadas pela criminalidade — sentem-se quando autoridades públicas aparecem de alguma forma conectadas ao crime. Se eu pudesse encontrar aquele senhor novamente, não tenho dúvidas de que ele acharia um absurdo o fato de que a esposa de um líder do Comando Vermelho, Luciane Barbosa — chamada pela imprensa de “dama do tráfico” —, foi a Brasília para um evento patrocinado pelo Ministério dos Direitos Humanos.
À mulher de César, não basta ser honesta: tem de parecer honesta. Com esse espírito é que devem ser feitas as críticas ao governo federal e deputados da base aliada por terem recebido Barbosa, que havia sido indicada por um comitê do estado do Amazonas como representante da sociedade civil no Encontro de Comitês e Mecanismos de Prevenção e Combate à Tortura. O governo estadual diz que o nome dela “aguardava nomeação”, mas ainda assim foi a Brasília em nome do Instituto Liberdade do Amazonas (ILA), organização não governamental presidida por Barbosa. No total, cerca de 70 pessoas participaram do encontro e receberam passagens e diárias do ministério.
Sem dúvida há por parte da oposição bolsonarista e da imprensa que lhe é simpática uma celeuma em torno da circulação dessa senhora por gabinetes em Brasília — ela chegou a tirar fotos com os deputados governistas André Janones e Guilherme Boulos. Se foto comprovasse ligação com o crime, Bolsonaro e seus asseclas já deveriam estar na Papuda ou em Bangu. Afinal, no governo anterior, não faltaram momentos em que figuras suspeitas posaram ao lado não apenas de ministros ou deputados, mas do próprio presidente da República.
Não caiamos, porém, na tentação do whataboutismo, que esconde erros atuais com malfeitos de adversários no passado. Ela é tão perigosa quanto distorcer os fatos, ignorando, por exemplo, que Barbosa ainda não tinha sido julgada e absolvida por conexões com o tráfico quando a visita ocorreu. A lição que fica para este episódio é que o governo tem de trabalhar com inteligência própria para não ser pego em situações como essa. Todavia, identificar o erro e apontá-lo está longe de ser coisa de fascista, tal como sugeriu o ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida. Há situações que, embora possam ser instrumentalizadas para fins políticos, implicam de modo inequívoco o respeito à coisa pública. Não me parece que patrocinar a ida de figuras próximas a sindicatos do crime esteja entre o bom uso dos recursos públicos.
Dito isso, é necessário combater com igual veemência o preconceito que há contra as famílias de presos, principalmente daqueles que cometeram pequenos crimes que poderiam talvez ser substituídos por penas alternativas. É o caso da juventude encarcerada por pequenas quantidades de entorpecentes, sobretudo pretos e pardos. Conforme estudos, eles precisam apenas de quantidades pequenas de drogas para serem classificados pela Justiça como traficantes em comparação a pessoas brancas.
Também causa espécie que pedidos de renúncia e/ou impeachment sejam feitos a Almeida e Flávio Dino, titular do Ministério da Justiça — cujas dependências também foram visitadas por Barbosa, mas não para o governador Wilson Lima (União Brasil), que em 2022 estava ao lado de Bolsonaro. Fascista ou não, a oposição faz o papel dela: surfa numa falha do governo. Já o eleitor pobre e conservador não quer saber: criminoso tem que ser punido. Dino e Almeida fariam bem para si, o governo e o país se frequentassem mais ambientes como pizzarias de bairro e conversassem com motoboys. Os salões de Brasília tornam o poder arrogante, seja à esquerda ou à direita.