A Instrução Normativa 2.288, de 30 de outubro de 2025, publicada pela Receita Federal em 10 de novembro, redesenha o procedimento de habilitação de créditos com base em decisões coletivas ao alterar a IN 2.055/2021. O movimento foi cirúrgico: reforça a exigência documental, introduz o art. 103-A e, no art. 105, estabelece hipóteses de indeferimento, entre elas a vedação à habilitação quando o mandado de segurança coletivo tiver sido impetrado por “associação de caráter genérico”.
Ainda que o objetivo seja nobre, o meio adotado não parece o mais apropriado.
O objetivo é, de um lado, nobre, porque, do ponto de vista dogmático, não há margem de aceitação para as chamadas “associações genéricas”. Essas entidades tensionam o modelo constitucional e civil de associação ao não representarem um grupo real, determinado e organicamente ligado por interesses comuns.
Pretender falar em nome de “todos os contribuintes” converte a associação em plataforma abstrata, esvazia o vínculo associativo exigido pelo art. 53 do Código Civil e distorce a própria lógica da substituição processual em matéria tributária.
A crítica é conhecida e hoje é reforçada pela jurisprudência do STF, que vem delimitando os efeitos de mandados de segurança coletivos ajuizados por entidades de objeto indeterminado, exigindo recorte de finalidade, filiação prévia e afastando a eficácia expansiva automática dessas estruturas[1].
Porém, a nobreza do fim não autoriza a Receita Federal a transformar, por ato infralegal, uma categoria aberta – “associação de caráter genérico” – em cláusula geral negativa de fruição da coisa julgada coletiva.
O art. 105, ao prever o indeferimento da habilitação quando o mandado de segurança coletivo tiver sido impetrado por associação genérica, desloca para o Auditor-Fiscal a competência para qualificar, em última instância administrativa, a natureza da entidade impetrante e, a partir daí, restringir o espectro subjetivo de um título judicial transitado em julgado.
O problema não está na conclusão material (isto é, associações genéricas não cumprem a função associativa e não devem produzir efeitos indistintos para o mercado), mas no veículo normativo escolhido e na grande margem de discricionariedade interpretativa do auditor para definição do conceito utilizado.
“Associação genérica” não é rótulo regulamentar disponível por conveniência administrativa. Trata-se de construção jurisprudencial, casuística, vinculada à análise do objeto social, da base de filiados, do desenho do litígio e das balizas fixadas no próprio título coletivo.
Quando a IN 2.288/2025 incorpora essa expressão sem densificação mínima, converte um conceito complexo em gatilho automático de indeferimento. A consequência prática é sensível: abre-se espaço para que a autoridade fiscal, sob o guarda-chuva de um termo indeterminado, relativize a eficácia de decisões judiciais sem que haja pronunciamento específico do Poder Judiciário sobre a ilegitimidade da associação em certo caso concreto.
Não parece possível admitir que a Receita, por meio de IN, converta um conceito aberto em pressuposto normativo autônomo com o objetivo de restringir o alcance de título executivo judicial.
Tal operação normativa configura violação direta ao princípio da legalidade, previsto no art. 150, inciso I, da Constituição Federal, bem como ao art. 97, inciso I, do Código Tributário Nacional, na medida em que institui condicionantes e limitações não previstas em lei para o exercício de direito creditório já reconhecido judicialmente.
Também afronta os incisos XXXV e XXXVI do art. 5º da Constituição, ao esvaziar, por via infralegal, a tutela jurisdicional e a própria coisa julgada, bem como o princípio da separação de poderes, previsto no art. 2º da Constituição, ao permitir que a Administração reconfigure, por ato regulamentar, os efeitos de decisão transitada em julgado.
Em última análise, transformar a noção de “associação de caráter genérico” em barreira normativa autossuficiente para negar habilitações equivale a subverter a hierarquia das fontes e a lógica de vinculação da atividade administrativa à lei e ao título judicial.
Ao posicionar a “associação de caráter genérico” como causa direta de indeferimento, o art. 105, se lido de forma ampla, projeta três riscos imediatos.
Primeiro, o risco de deslocar para a esfera administrativa uma competência típica do juízo da ação coletiva e da fase de cumprimento: definir quem é, à luz do caso concreto, substituído legítimo. A autoridade fiscal não pode reescrever, por interpretação extensiva de IN, o alcance subjetivo de uma decisão transitada em julgado.
Segundo, o risco de assimetria decisória. Sem critérios objetivos, a mesma associação poderá ser reputada “genérica” em uma unidade e “legítima” em outra, produzindo insegurança jurídica, litigiosidade defensiva e incremento do contencioso sobre a própria habilitação.
Terceiro, o risco de dano colateral às associações setoriais idôneas, com objeto amplo, porém materialmente conectado à base representada. O discurso contra as entidades de prateleira não pode servir de biombo para negar, por via regulamentar, a atuação de entidades que efetivamente cumprem a função associativa e cuja legitimidade já foi reconhecida em juízo.
Por isso, a crítica adequada à IN 2.288/2025 não é quanto à escolha do objetivo, mas quanto à forma normativa empregada.
A saída está na leitura estritamente conforme à Constituição e à jurisprudência: o art. 105 deve ser interpretado de forma restritiva, de modo que a vedação fundada em “associação de caráter genérico” se aplique apenas quando o próprio título judicial ou decisões supervenientes tenham delimitado a ilegitimidade ou o alcance subjetivo em razão da genericidade; ou a análise objetiva do estatuto, à época da impetração, revele desconexão manifesta entre objeto social, base associativa e tese deduzida, em linha com os precedentes do STF. Qualquer normativa que desrespeitar estes critérios representa limitação indevida de direitos creditórios já reconhecidos.
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As associações genéricas não cumprem a função associativa e não devem ser veículo de tutela coletiva tributária. Porém, o combate ao uso indevido dessa forma jurídica não pode ser feito mediante cláusulas vagas em ato infralegal que concentram na Receita Federal um poder de filtragem da coisa julgada que não lhe pertence.
Se o freio é necessário, ele deve se dar dentro das balizas constitucionais, sob pena de transformar um avanço na integridade da tutela coletiva em mais uma camada de incerteza para contribuintes que fazem o jogo certo pelas vias certas.
[1] Nesse sentido: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 1339496. Rel. Min Edson Fachin. Julgado em 7 de fev. 2023. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 10. abr. 2023.