Na primeira coluna deste ano, a pretexto da curadoria das leis, explicou-se a importância da institucionalização dos órgãos de representação judicial das Casas Legislativas, não só para assumir as atribuições do art. 103, § 3º, da CF, mas também para a defesa de sua autonomia, de suas competências e das demais prerrogativas institucionais, inclusive as dos parlamentares.
Nesse texto, foram citados diversos julgados do STF que reconhecem a constitucionalidade da estruturação de tais órgãos de assessoramento jurídico e representação judicial, não sendo o caso de repetir aqui. Entretanto, retorna-se ao tema porque está em curso julgamento que pode implicar grande retrocesso nessa discussão, ainda que indiretamente.
Na ADI 7177, ajuizada pela Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape), pede-se a inconstitucionalidade do art. 243-C da Constituição do Estado do Paraná, incluído pela EC 51/2021, pelo qual: “O assessoramento jurídico das atividades técnicas e administrativas e, por determinação do Presidente do Tribunal de Contas, a representação judicial do Tribunal de Contas do Estado, serão exercidos por servidores efetivos do quadro próprio do Tribunal de Contas do Estado, regularmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil”.
De acordo com o § 1º do dispositivo impugnado, tais servidores podem exercer a representação judicial nos casos em que o Tribunal atuar em nome próprio, na defesa de sua autonomia e de suas prerrogativas institucionais, sendo-lhes vedado exercer advocacia fora das funções institucionais e o exercício de qualquer outra função pública, salvo o magistério (§ 2º).
Na petição inicial, a Anape sustenta, em síntese: a) vício de iniciativa, pois tal matéria seria privativa do Tribunal de Contas (art. 73 c/c art. 96, inciso I, alínea a, da CF), e não de iniciativa parlamentar; b) violação aos arts. 37, inciso II (a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público), 132 (a representação judicial e a atividade de consultoria e assessoramento jurídico das respectivas unidades federadas a cargo dos procuradores dos Estados e do DF), 133 (indispensabilidade e inviolabilidade do advogado) e à Súmula Vinculante 43 (“É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido”).
O argumento central é que é inconstitucional atribuir a função de representação judicial do Tribunal de Contas do Estado a seus servidores efetivos, seja porque isso configuraria transposição ou transformação de cargo vedada (via inserção de atribuição não prevista no concurso público originalmente realizado), seja porque tal prerrogativa seria exclusiva dos procuradores dos Estados e do DF.
A reivindicação de uma exclusividade remonta à construção de um princípio da unicidade ou unidade orgânica da Advocacia Pública dos Estados e do DF que teria sido consagrada no art. 132 da CF. Alguns julgados do STF reconheceram tal exclusividade, por exemplo: ADI-MC 881, ADIs 145, 94, etc. Em todos esses casos, a lógica é vedar a criação de carreiras paralelas dentro do próprio Poder Executivo. Assim, a rigor, esse princípio não se aplica à institucionalização do assessoramento jurídico fora desse poder (veja-se aqui).
Passando à análise dos argumentos da ADI 7177, não subsiste a alegação de inconstitucionalidade formal, pois, como bem sabido, os legitimados para a apresentação de propostas de emenda à Constituição são somente os que estão listados no art. 60 da CF, norma de reprodução obrigatória junto aos Estados membros. Nessa situação (em que os detentores da iniciativa no âmbito da legislação ordinária não o têm para desencadear a reforma da Constituição), não reconhecer iniciativa parlamentar equivaleria a tornar o texto constitucional imutável quanto a certos assuntos.
Inclusive, cabe o parêntese para registrar que não viola a separação dos poderes PECs de iniciativa executiva ou parlamentar sobre o Poder Judiciário. A lenda urbana de que haveria vício de iniciativa ou violação à separação dos poderes nesse caso se deve à decisão monocrática tomada pelo então ministro presidente do STF, Joaquim Barbosa, na ADI-MC 5017, que suspendeu a EC 73/2013, que criava os Tribunais Regionais Federais das 6ª, 7ª, 8ª e 9ª Regiões. Passados mais de dez anos, tal decisão jamais foi submetida a referendo da Corte e se mantém até hoje.
Vale registrar que a recém-criação do Tribunal Regional Federal da 6ª Região se deu por força da Lei 14.226/2021, oriunda do PL 5919/2019, de autoria do STJ. Entretanto, isso não torna a EC 73/2013 inconstitucional. Recorde-se, ainda, que a própria EC 45/2004, que promoveu uma ampla reforma no Poder Judiciário, foi de iniciativa parlamentar: a PEC 96/1992 tinha sido apresentada pelo então deputado federal Hélio Bicudo (PT-SP). Nem por isso foi declarada inconstitucional.
Voltando à análise da ADI 7177, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, julgou procedente, em parte, o pedido e entendeu que o caso seria de mera interpretação conforme do art. 243-C da Constituição do Estado do Paraná, restringindo seu âmbito de aplicação à consultoria interna e assessoramento jurídico do TCE, e a representação judicial, às discussões sobre sua autonomia.
Entretanto, reputou não ser possível o aproveitamento dos servidores do quadro da Corte e entendeu que o efetivo funcionamento do órgão criado depende de: a) lei que crie ou transforme cargos no âmbito do Tribunal de Contas; b) realização de concurso público para preenchê-los, vedada a transposição por designação da presidência; e c) previsão específica em lei de atribuição do cargo para atuar na consultoria ou assessoramento da Corte e, apenas quando discutida sua autonomia ou suas prerrogativas, na sua representação judicial. Assim, propôs a declaração de inconstitucionalidade da expressão “por determinação do presidente do Tribunal de Contas” constante do dispositivo impugnado.
Propôs a fixação da seguinte tese: “1. É constitucional a criação de órgão para assessoramento e consultoria jurídica de Tribunal de Contas, podendo, todavia, realizar a representação judicial da Corte exclusivamente nos casos em que discutidas prerrogativas institucionais ou a autonomia do TCE. 2. É inconstitucional, por violação ao art. 37, II, da CF/1988, o aproveitamento de servidores titulares de cargos públicos diversos, por designação, para atuarem como advogados do Tribunal de Contas”.
Em seu voto, alinhado à jurisprudência do STF (ADIs 1557, 825, 6433, etc.), o ministro reconheceu a constitucionalidade das Procuradorias das Assembleias Legislativas, de Tribunais de Justiça e de Tribunais de Contas como “exceções” à regra da unicidade da representação judicial e da consultoria jurídica dos Estados e do DF, embora tenha incorrido na já criticada limitação dessa atuação à defesa das prerrogativas institucionais, quando também seria possível a representação de seus órgãos, membros e funcionários.
Seja como for, o relator foi acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin e, com ressalvas, pelo ministro André Mendonça, em cujo voto-vista está a pior compreensão sobre a problemática.
O ministro André Mendonça fez ressalvas para assentar que haveria margem constitucional para a adoção de um modelo de representação judicial diverso, não por meio da realização de concurso público para servidores efetivos do próprio Tribunal, mas por procuradores públicos designados ad hoc, inspirado no modelo federal previsto na Lei 9.028/1995, art. 22, e na Portaria AGU 254, de 17 de agosto de 2018, que preveem tal designação quando haja “conflitos de interesses entre dois ou mais órgãos ou instituições”.
Ora, como já comentado na coluna passada, é equivocado limitar a representação judicial às discussões com os demais Poderes. As Casas Legislativas e os Tribunais de Contas podem precisar litigar com outros órgãos independentes (Ministério Público, Defensoria Pública, etc.), outro ente federado, pessoas jurídicas de direito privado ou mesmo indivíduos. As controvérsias não se dão só em conflitos de interesses entre dois ou mais órgãos ou instituições do mesmo ente federado.
Além disso, a necessidade de continuidade do serviço não recomendaria a adoção desse modelo ad hoc, que é precário e vai precisamente na contramão da institucionalização das atribuições. Mesmo com a indicação de que, no caso da AGU, a representação judicial ad hoc seguirá as orientações do órgão representado, isso não é o suficiente para conferir estabilidade e consistência. Por ocasião do julgamento da ADI 175, o ministro Octavio Gallotti registrou que jamais seria adequado atribuir a representação judicial das Assembleias Legislativas e Tribunais à Procuradoria do Estado, integrada ao Executivo.
O ministro Gilmar Mendes abriu divergência para julgar improcedente o pedido. Em seu voto-vista, afasta que as prerrogativas de assessoramento jurídico e representação judicial sejam exclusivas dos Procuradores dos Estados. Por outro lado, não reputou essencial que a atribuição seja exercida por uma carreira própria destinada especialmente a tal atividade.
Aqui, o ministro alertou que a adoção do entendimento do relator implicará a imediata inconstitucionalidade do funcionamento de várias procuradorias de TCEs, que tampouco estão institucionalizadas, bem como na inviabilização da Advocacia da Câmara dos Deputados e dos arranjos das Assembleias Legislativas do Ceará, Maranhão e Mato Grosso do Sul, que não contam com carreira especial de advogados ou procuradores legislativos. Nesses órgãos, as atividades de consultoria jurídica e representação judicial vêm sendo realizadas por servidores comissionados ou investidos em funções de confiança.
A divergência aberta pelo ministro Gilmar Mendes foi acompanhada pelos ministros Dias Toffoli, que também apresentou voto-vista aderindo à proposta do ministro André Mendonça de designações ad hoc, e Flávio Dino. O julgamento começou no último dia 28 de junho e está previsto para terminar no próximo dia 06 de agosto. Até lá, espera-se que os demais ministros se atentem para os pontos de preocupação levantados na divergência aberta pelo ministro Gilmar Mendes, às crítica formuladas aqui, e que o item 2 seja eliminado da tese que se pretende fixar.