Aspectos gerais sobre as offshores e as repercussões no IRPF

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Esse é mais um artigo da série sobre Direito Tributário e Contabilidade. O texto destoa dos demais artigos desta série, que normalmente recaem sobre as controvérsias jurídico-contábeis das pessoas jurídicas. A análise de hoje é direcionada aos aspectos contábeis das pessoas físicas controladoras/investidoras em companhias no exterior.

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Primeiramente, para situar a análise, é importante consignar que não há uma definição legal específica no ordenamento jurídico brasileiro para a expressão “offshore”, a despeito de o termo normalmente ser relacionado a empresas constituídas em “paraísos fiscais” ou que estão em busca de possíveis vantagens tributárias. Na verdade, muitas das empresas offshore são constituídas por diversas razões não tributárias, que levam em consideração outras questões, como proteção contra flutuações na moeda local, sucessão patrimonial, proteção de ativos, diluição de risco ou até mesmo por imposições regulatórias relacionadas a outras jurisdições em que o residente fiscal brasileiro pretende investir os ativos ou recursos detidos por essas empresas.

Trata-se de um tema que, nesse momento, ganha especial relevância pelo estágio do Projeto de Lei (PL) n. 4.173/2023, que busca alterar a forma como os rendimentos auferidos no exterior por pessoas físicas residentes fiscais no Brasil deverão ser oferecidos à tributação. Se a expectativa de aprovação do PL for confirmada, o texto aprovado será objeto de reflexões nesta série após a publicação da lei.

Resumindo os episódios da evolução tributação em bases universais no Brasil, a iniciativa para remodelagem da tributação dos investimentos iniciou com uma medida provisória proposta pelo Governo Federal[1] que continha, em sua exposição de motivos[2], menção aos dados do Banco Central do Brasil, que indicam que “as pessoas físicas possuem ativos no exterior em valor total superior a USD 200 bilhões e parte expressiva se refere a participações em empresas e fundos de investimento, especialmente em países ou regimes de baixa ou nula tributação, sendo que os rendimentos auferidos pelas pessoas físicas por meio de tais estruturas investimentos raramente são levados à tributação do imposto de renda brasileiro”, o que denuncia a relevância, em termos de arrecadação, do tema e da medida.

As empresas offshore, quando comparadas com outros veículos de investimento no exterior para pessoas físicas – como são os fundos exclusivos, trusts, fundações –, se destacam pela simplicidade operacional. Esse tipo de companhia permite alcançar soluções eficazes àqueles que desejam preservar a unidade e a perenidade do patrimônio nela alocado. Isso é alcançado mediante a implementação de compliance e regras de governança corporativa, que podem viabilizar benefícios adicionais, como uma gestão e administração mais eficientes, maior transparência e mitigação dos riscos envolvidos.

Do ponto de vista tributário, atualmente, enquanto não for aprovado projeto de lei recém-mencionado, o investimento no exterior mediante empresas offshore oferece diversas vantagens, pois é possível (i) compensar ganhos e perdas da carteira de investimento no exterior, que são consolidados na empresa, (ii) a isenção – ou submissão ao regime de tributação sobre os lucros – na jurisdição do exterior e (iii), como mencionado na Exposição de Motivos da MP n. 1.171, o diferimento da incidência do IRPF sobre os ganhos das offshores até a disponibilização aos investidores brasileiros.

No regime atual, a regra de tributação automática é aplicável somente aos lucros auferidos no exterior sob o controle de pessoas jurídicas brasileiras. É interessante notar que esse assunto não é novo, a Medida Provisória n. 627/2013, que foi convertida para a Lei n. 12.973/2014 e que disciplina o tema para as pessoas jurídicas, continha regras específicas para pessoas físicas que, na época, foram rejeitadas pelo Congresso.

Independentemente do resultado do processo legislativo, com relação aos investimentos em offshore, a principal preocupação nessas estruturas é garantir o cumprimento de todos os deveres instrumentais pertinentes para evitar questionamentos fiscais e regulatórios. Esse é um aspecto que será abordado com maior detalhamento no próximo texto e que merece especial atenção pela circunstância de que as empresas offshores têm características próprias e diferentes dos tipos societários previstos pela legislação brasileira, o que dificulta a compreensão pelos investidores ou pelas autoridades fazendárias. Naturalmente, a eficiência fiscal destes investimentos depende do reconhecimento da legitimidade da estrutura pela Receita Federal do Brasil e, em alguns casos específicos, quando se tratar de planejamento sucessório com doação ou herança, pelos Estados da Federação.

Nesse panorama, são comuns os questionamentos sobre as formalidades que as pessoas físicas residentes fiscais no Brasil estão sujeitas, especialmente no que diz respeito à obrigação de elaborar e manter em boa guarda registros contábeis da companhia investida. Tradicionalmente, as jurisdições mais comuns para o domicílio de offshores apresentam regras simplificadas e flexíveis para a constituição, manutenção e dissolução, incluindo os requisitos relacionados aos registros contábeis. Além disso, a estrutura no exterior funciona como veículo de planejamento e investimento patrimonial para pessoas físicas residentes no Brasil em atividades que, em teoria, não demandam a aplicação de contabilidade no mesmo rigor das atividades empresariais com operações tradicionais (IFRS full), como a prestação de serviços ou a comercialização de mercadorias.

Com relação aos aspectos de proteção patrimonial, assim como ocorre na constituição de uma empresa no país, quando o sócio pessoa física, residente fiscal no Brasil, constitui uma empresa offshore e contribui com seu próprio patrimônio por meio da integralização de capital, a companhia se torna a proprietária de imóveis, aplicações financeiras e outros ativos, assumindo a responsabilidade direta por quaisquer dívidas que contraia. É importante destacar, porém, que a personalidade jurídica e a autonomia patrimonial da offshore não são absolutas e invioláveis, o que significa que não protegem o sócio e o investidor de todas as maneiras possíveis. O Código Civil, por exemplo, prevê que, em casos de abuso da estrutura da pessoa jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela inadequada mistura de patrimônios, os credores podem solicitar a desconsideração dessa personalidade jurídica para atribuir certas obrigações ao sócio investidor.

Considerando-se que parcela significativa dos investimentos em offshore por pessoas físicas são de natureza patrimonial – e não operacionais, como normalmente ocorre quando se trata de uma companhia controlada/coligada de outra pessoa jurídica brasileira –, é importante preservar a autonomia e independência do sócio e da pessoa jurídica investida, bem como das implicações do seu uso indevido para evitar a desconsideração. Ainda que, por se tratar de uma companhia sujeita a outra jurisdição, operacionalmente, possa ser encontrados alguns óbices para alcançar o patrimônio detido pela empresa no exterior, as consequências jurídicas da desconsideração da personalidade são bastante similares àquelas que seriam aplicáveis no contexto doméstico.

Para fins tributários, porém, a desconsideração da personalidade jurídica não se limita às disposições estabelecidas no artigo 50 do Código Civil, que estabelece uma ordem de expedientes para esse propósito. As normas de responsabilidade tributária previstas nos capítulos IV e V do Tributário Nacional contemplam outras situações em que terceiros podem ser responsabilizados pelos tributos devidos pela pessoa jurídica, independentemente da quebra da personalidade jurídica.

Ademais, é comum identificar decisões judiciais e administrativas que levam em consideração a predominância da substância sobre a forma, exigindo, em linhas muito gerais, a comprovação não apenas da existência formal da empresa, mas também da sua existência real, respaldada em sua substância econômica, incluindo elementos como estrutura física adequada para realizar suas atividades, existência de funcionários, concentração da gestão, entre outros.

Aí reside a importância da contabilidade. É que, de um lado, o direito prescreve como deve ser a relação jurídica subjacente à atividade econômica, ao passo que, de outro, a contabilidade transmite, em linguagem própria, uma visão estruturada dessa mesma atividade, classificando-a de maneira coordenada e sempre traduzida de forma numérica, tendo como principal missão o fornecimento de informações precisas sobre o conjunto de bens, direito e obrigações da entidade e suas mutações em determinado período.

Assim, as demonstrações contábeis desempenham um papel essencial para evidenciar a efetiva autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Conforme veremos com maior detalhamento no próximo artigo, a constituição de uma companhia offshore sem a confecção de contabilidade adequada pode suscitar questionamentos pelas autoridades fazendárias brasileiras sobre a substância da pessoa jurídica e, consequentemente, tornar a estrutura vulnerável do ponto de vista tributário. Se, por exemplo, o investidor de uma companhia offshore não possui uma conta bancária no exterior, mas alega, perante as autoridades fazendárias, que possui participação societária em uma empresa offshore que tem como objetivo a gestão de sua carteira financeira, deve ser capaz de comprovar a autonomia patrimonial – apresentando, entre outros elementos, as demonstrações financeiras –, ou até mesmo sua existência concreta, não apenas a documentação formal de constituição.

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[1] Trata-se de Medida Provisória n. 1.171/2023, que perdeu validade sem ser analisada pelo Congresso Nacional. A tributação das companhias offshores voltou à mira do governo em um PL de iniciativa do presidente, o PL n. 4.173/2023, com ajustes sobre a versão original. A medida, conforme prescrevia o art. 1º desse PL, era direcionada aos rendimentos auferidos “por pessoas físicas residentes no País em aplicações financeiras, entidades controladas e trusts no exterior será tributada pelo Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas – IRPF”.

[2] Cf. link disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Exm/Exm-1171-23.pdf. Acesso em: 16 out. 2023.