Em 8 de outubro de 2024, ao sancionar a Lei do Combustível do Futuro, o governo brasileiro deu um passo importante para a descarbonização do transporte. Além de aumentar o percentual de mistura de etanol ao diesel e à gasolina – reduzindo assim emissões associadas de gases de efeito estufa (GEE) –, o texto cria programas nacionais para captura de carbono, desenvolvimento de biometano, biodiesel e de combustíveis sustentáveis para aviação (SAFs). Também prevê atrair cerca de R$ 260 bilhões em investimentos.
Zerar as emissões do setor vai exigir mais. Apesar de contar com uma matriz elétrica com mais de 80% de fontes renováveis, o ponto de partida brasileiro é extremamente favorável: mais de 80% da matriz elétrica é renovável. Mas o uso de combustíveis fósseis para transporte mantém a matriz energética majoritariamente não-renovável.
Em 2022, segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), o sistema de estimativas do Observatório do Clima, energia foi o segundo maior setor emissor de GEE (17,8%), atrás apenas da agropecuária (26,6%). O transporte, principalmente rodoviário, é responsável pela maior parte dessas emissões.
Eletrificação, biocombustíveis e hidrogênio verde
Crucial para enfrentar as mudanças climáticas, a transição energética é um dos grandes temas do Brasil no G20, fórum internacional de cooperação econômica que acontece em novembro, no Rio de Janeiro.
Diversas soluções, como os biocombustíveis, os combustíveis sintéticos e a eletrificação precisarão coexistir para que a descarbonização do setor se materialize. A eletrificação de veículos é a principal uma solução até agora promissora, embora exija escala , a substituição quase total da frota e a implementação de uma infraestrutura estratégica de recarga a partir de fontes limpas.
Por isso, há uma dose de realismo nos cálculos. “No processo de transição, sempre vamos estar falando de um mix de tecnologias”, explica Virgínia Tavares, coordenadora de eletromobilidade do WRI Brasil. “Hoje a solução zero-emissão mais madura são os veículos elétricos à bateria. Mas sabemos que o Brasil é um país com potencial para produção de biocombustíveis, como o etanol, que têm redução de emissões associadas.”
Existe ainda outro combustível, outra solução potencial: os veículos elétricos a células de hidrogênio. “Veículos movidos a hidrogênio também são considerados veículos elétricos. É uma tecnologia que tem se mostrado bastante promissora para operar por longas distâncias”, comenta Virginia.
Para estimular seu desenvolvimento, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Política Nacional do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono, em agosto. Os projetos de chamado hidrogênio verde também podem se tornar celeiros de empregos: estima-se que serão necessários 3 mil técnicos ao ano para a expansão da categoria.
No caso do transporte urbano, onde deslocamentos são menores, Virginia vê avanços especialmente no transporte coletivo. Há mais de 100 mil ônibus urbanos no Brasil, com escassos 600 deles eletrificados. De olho no potencial, governos e fabricantes nacionais têm adaptado políticas e plantas para renovar a frota. “O Novo PAC tem perspectiva de financiar quase 2,3 mil ônibus elétricos em mais de 50 cidades brasileiras”, fala a pesquisadora.
“No processo de transição, sempre vamos estar falando de um mix de tecnologias”, Virgínia Tavares, coordenadora de eletromobilidade do WRI Brasil.
Articulação entre stakeholders
De maneira geral, os estímulos coordenados entre governo, iniciativa privada e agentes financeiros precisam aumentar. Ainda não existe, por exemplo, uma estratégia nacional para eletrificação de transportes, ao contrário do que ocorre no Chile e na Colômbia.
Buscando mais alinhamento, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima criou uma coalizão junto ao WRI Brasil para estruturar as diretrizes de uma política nacional de descarbonização do transporte de carga urbano. Também há movimentação no campo da logística: em setembro, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) assinou um termo de cooperação com o MoveInfra, que reúne as seis maiores empresas de infraestrutura do Brasil, para estudar novas regras para a descarbonização do setor.
No G20, o Grupo de Trabalho de Transições Energéticas aprovou recentemente uma declaração conjunta para triplicar a capacidade de energia renovável e dobrar a eficiência energética até 2030. Há ainda os “diálogos itinerantes” sobre transição energética, promovidos pelo governo em quatro capitais. Esses seminários paralelos debatem a transição com a sociedade e fazem parte da iniciativa G20 Social, uma proposta da presidência brasileira para aumentar a participação de atores não-governamentais nos processos.
Contabilidade de carbono: desafio para empresas
O MoveInfra – coletivo que abarca infraestrutura rodoviária, ferroviária, portuária e hidroviária – publicou um estudo jurídico recente sobre o arcabouço regulatório atual e oportunidades para acelerar a descarbonização do setor. Encomendado ao escritório de advocacia BMA, o documento defende a implementação de inventários de GEE em toda a cadeia de valor, maior atenção às particularidades infraestruturais e a adoção de metas específicas de descarbonização para licitações, entre outras medidas.
De terminais portuários a fornecedores, as empresas que inventariam suas emissões ainda são minoria no Brasil. São diversos os protocolos reconhecidos disponíveis – todos intrincados, custosos e com auditoria externa.
Segundo Raíssa Amorim, consultora de sustentabilidade do MoveInfra, a dificuldade contábil é maior no cálculo de emissões do escopo 3, que estima o que ocorre ao longo da cadeia. “Se um fornecedor não tem a metodologia adequada, ele não controla quanto gasta em combustível ou energia elétrica e não tem um número para passar”, explica. Uma compra de cimento no interior do Maranhão, por exemplo, pode gerar uma série de lacunas, tanto no transporte quanto na fabricação e conversão da matéria-prima.
Outro problema, segundo Raíssa, é a falta de incentivos públicos que levem em conta as particularidades da logística, visto que a maioria está voltada para a eletrificação. “Com cargas [pesadas] como grãos e minérios, eletrificar ferrovias não é uma realidade. Não temos máquinas fortes o suficiente”, exemplifica. Ainda assim, ela ressalta que investir em trens e comboios hidroviários, que são mais eficientes e menos poluentes, retiraria uma enorme quantidade de caminhões à combustão das ruas.
“Os projetos sustentáveis e de baixo carbono não só contribuem para a descarbonização, mas também mitigam riscos significativos associados a setores tradicionais. Oferecem menor volatilidade regulatória, menos exposição a passivos ambientais e, consequentemente, um perfil de risco mais atraente para investidores”, Guilherme Pessini, diretor de estratégia e planejamento do Itaú BBA.
Financiando a transição
Naturalmente, todas essas mudanças custam caro. A transição energética global poderá custar US$ 9,2 trilhões por ano até 2050, de acordo com a consultoria McKinsey. E há ainda distorções a serem corrigidas no sistema atual, principalmente na forma de subsídios governamentais para combustíveis fósseis: foram US$ 620 bilhões em 2023, enquanto apenas US$ 70 bilhões foram direcionados para energia limpa, segundo a Agência Internacional de Energia (IEA).
O governo federal recentemente anunciou mais uma política nacional, a de Transição Energética, prevendo atrair investimentos de R$ 2 trilhões em 10 anos. No setor privado, o financiamento também está se consolidando, especialmente em bancos de desenvolvimento.
“Vemos interesse inclusive de governos em estabelecerem parcerias com o Brasil para o desenvolvimento do setor energético”, diz Guilherme Pessini, diretor de estratégia e planejamento do Itaú BBA. Ele cita ainda o Programa Eco Invest, que faz parte do Plano de Transformação Ecológica do Brasil e que quer atrair capital privado estrangeiro para financiar projetos sustentáveis.
No próprio Itaú, o maior banco do país em ativos, produtos ligados ao ESG têm relevância crescente. Segundo Pessini, até outubro deste ano foram emitidos 25 títulos ESG no mercado local, totalizando R$ 11,7 bilhões. E o compromisso do banco de destinar R$ 400 bilhões em recursos para negócios sustentáveis até 2025, firmado em 2021, inclui 23% para energia limpa.
“Os projetos sustentáveis e de baixo carbono não só contribuem para a descarbonização, mas também mitigam riscos significativos associados a setores tradicionais. Oferecem menor volatilidade regulatória, menos exposição a passivos ambientais e, consequentemente, um perfil de risco mais atraente para investidores”, comenta.
A tarefa de zerar as emissões de transporte é, sem dúvida, hercúlea. Mas não é impossível. “Essa não é uma agenda de competição, e sim de cooperação entre todos os setores para trocarmos conhecimento e experiências, fomentar inovações e trazer maior velocidade para atingirmos os objetivos de descarbonização”, finaliza Pessini.