As plataformas de intermediação de transporte sob as lentes da AED

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O avanço das tecnologias digitais transformou significativamente diversos setores da economia, avançando até mesmo sobre áreas em que governos tinham “monopólio da confiança” como no transporte urbano (nas palavras do professor T. Henderson).

No Brasil, as plataformas de intermediação de transporte de passageiros, popularmente chamadas de aplicativos de transporte, desempenham um papel crucial na redução das falhas de mercado da mobilidade urbana, oferecendo soluções práticas e acessíveis para milhões de consumidores, além de oportunidades econômicas para motoristas, inovando sobre a opção da regulação municipal via licenças e permissões de taxis.

Com efeito, trata-se de uma tecnologia que permite reduzir assimetrias informacionais relacionadas à qualidade dos motoristas e passageiros e custos.

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No entanto, o sucesso dessas plataformas no mercado de transporte urbano trouxe à tona debates jurídicos sobre a natureza da relação entre as empresas e seus motoristas, vencida a discussão regulatória do passado sobre sua licitude em julgado do STF relatado pelo ministro Fux (Uber vs. Prefeitura de Fortaleza).

Discussão essa trazida por uma minoria de motoristas e pelo Ministério Público do Trabalho. Como aquele bebê que tenta colocar o triângulo no espaço do quadrado no brinquedo de encaixe de formas, buscam esses autores a aplicação de uma legislação de 1943 a uma realidade absolutamente distante e não prevista.

O enquadramento dos motoristas de aplicativos como empregados, submetendo-os às normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), tornou-se tema de intenso debate jurídico e econômico. Essa questão está em análise no Supremo Tribunal Federal (STF) por meio do Recurso Extraordinário 1.446.336, que busca estabelecer um consenso constitucional sobre o tema.

O aumento exponencial de litígios na Justiça do Trabalho reflete a urgência desse debate: antes de 2020, registravam-se menos de 1.000 casos anuais relacionados a motoristas de aplicativos, número que atualmente se aproxima de 8.000.

Estima-se que a manutenção dos atuais níveis de litigância acarretará — além de um agravamento da sua já elevada taxa de congestionamento processual— em um custo superior a R$ 127 milhões para a Justiça do Trabalho, ou mais corretamente, para os contribuintes que a financiam. Mas há outras externalidades negativas mais graves e que devem ser mensuradas por determinação expressa da lei: artigo 20 da Lei de Introdução às Normas (LINDB). 

Essas consequências relacionadas aos riscos reais de perda significativa de bem-estar para os participantes desse mercado — consumidores, motoristas e empresas —, devem ser ponderadas sob a ótica da Análise Econômica do Direito (AED). Essa abordagem permite avaliar os impactos econômicos e sociais de uma eventual intervenção no mercado, isto é, de uma decisão de imposição de vínculo empregatício, considerando como a rigidez regulatória trabalhista pensada para o século passado poderia comprometer os incentivos que sustentam esse modelo de negócio. 

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Inicialmente, o enquadramento dos motoristas como empregados acarretaria um aumento substancial nos custos de transação para as plataformas, exigindo planejamento de turnos e previsão de demanda para momentos de pico, algo extremamente difícil de se fazer com muita antecedência (pense-se, por exemplo, na imprevisibilidade do trânsito de uma cidade como São Paulo).

Erros nessa previsão ampliariam a ociosidade dos motoristas em períodos de baixa demanda e gerariam escassez de motoristas nos momentos de alta demanda, de modo que a eficiência e a confiança por parte dos usuários no sistema seria comprometida. Isso certamente reduziria o número de consumidores.

Além disso, o aumento dos custos operacionais, combinado com a alta elasticidade da demanda nesse mercado, também reduziria o número de consumidores, uma vez que usuários desse tipo de serviço são bastante sensíveis a variações de preços. Um número menor de consumidores comprometeria os ganhos de escala e as externalidades de rede, que são elementos cruciais para a sustentabilidade econômica das plataformas. 

Em resumo, a mudança para um modelo de vínculo empregatício reintroduziria problemas que as plataformas de transporte conseguiram superar por meio da inovação, como a rigidez na gestão de oferta e demanda, ao mesmo tempo em que criaria novas ineficiências, como aumento de custos operacionais e perda de flexibilidade. Esses fatores poderiam inviabilizar o modelo econômico das plataformas, levando ao encerramento de suas atividades no Brasil.

Esse cenário não seria inédito. Em locais como Califórnia, Suécia, Espanha e, recentemente em Mineápolis, mudanças regulatórias similares levaram à interrupção ou à redução significativa das operações das plataformas, impactando negativamente motoristas e consumidores. 

Diante desse cenário, cabe refletir: como ficaria a situação dos motoristas caso as plataformas de transporte deixassem de operar? O que eles estariam fazendo? Qual seria a sua situação econômica?

Para responder a essas perguntas, este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa ainda inédita baseada em uma amostra representativa do mercado de trabalho brasileiro, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2022, que incluiu o módulo sobre teletrabalho e trabalho por meio de plataformas digitais. Utilizando a metodologia de Propensity Score Matching (PSM), construímos um cenário contrafactual para compreender como seria a situação dos motoristas caso as plataformas de transporte não existissem. 

Para quem não é familiarizado com o método, o PSM é uma técnica estatística que permite comparar grupos semelhantes de pessoas — neste caso, motoristas de aplicativos e trabalhadores potenciais que possuem características socioeconômicas e demográficas similares. A ideia é encontrar um “gêmeo estatístico” para cada motorista de aplicativo, alguém que compartilhe características como idade, escolaridade, região de residência e outros fatores, mas que não trabalhe para uma plataforma digital.

Essa abordagem nos permite isolar os efeitos específicos de trabalhar com o uso de plataformas, estimando os impactos econômicos e sociais, como renda e emprego, na ausência dessa opção. Assim, em contraste com cenários hipotéticos que podem não refletir a complexidade dos dados, essa análise, baseada em evidências, oferece uma forma confiável para avaliar os impactos de um eventual fim das operações das plataformas de intermediação de transporte no Brasil. 

Inicialmente, é importante dimensionar o mercado de trabalho relacionado às plataformas digitais. De acordo com a PNAD de 2022, aproximadamente 1,49 milhão de brasileiros atuavam utilizando aplicativos de serviços, sendo 703 mil diretamente envolvidos no transporte urbano por meio dessas plataformas.

No entanto, esse número representa apenas uma parte do impacto total das plataformas, pois muitos motoristas utilizam esses serviços de forma esporádica, como uma estratégia para complementar sua renda. No caso da Uber, por exemplo, cerca de 5 milhões de brasileiros já geraram renda utilizando a plataforma.

Os resultados do estudo revelam que, na ausência das plataformas de intermediação de transporte, a renda média dos motoristas sofreria uma redução significativa, estimada em cerca de 30%. Enquanto os motoristas que utilizam aplicativos possuem uma renda média de R$ 2.294,40, o cenário contrafactual para trabalhadores com características semelhantes aponta uma média de R$ 1.652,49. 

Além do impacto direto nos rendimentos, os aplicativos desempenham um papel crucial na geração de oportunidades para esse grupo. Os dados indicam que 63,97% do grupo de controle — composto por indivíduos que possuem perfil semelhante ao dos motoristas de aplicativos, mas que não utilizam essas plataformas — encontram-se sem qualquer fonte de renda do trabalho.

Esses números permitem estimar que, sem a existência dos aplicativos de transporte, cerca de 450 mil dos aproximadamente 700 mil motoristas de aplicativos no Brasil em 2022 poderiam estar fora do mercado de trabalho. 

A ausência das plataformas resultaria em um aumento significativo na pobreza entre os motoristas. De acordo com os dados da PNAD, apenas 2,5% dos motoristas que utilizam aplicativos estavam abaixo da linha de pobreza em 2022. No entanto, no grupo estatístico “gêmeo” — formado por indivíduos com características socioeconômicas semelhantes, mas que não trabalham com aplicativos —, esse percentual salta para impressionantes 69%, considerando a linha de pobreza estabelecida pelo IBGE em 2022, fixada em R$ 637. 

Em conjunto, esses resultados deixam claro que os aplicativos não apenas geram oportunidades de trabalho, mas também desempenham um papel essencial na inclusão econômica e na melhoria das condições de vida de milhares de trabalhadores. 

O fato é que os aplicativos de intermediação de transporte oferecem oportunidades acessíveis e flexíveis, especialmente para uma camada menos privilegiada da população, que muitas vezes enfrenta barreiras significativas para ingressar no mercado de trabalho tradicional. Diferentemente de oportunidades que exigem longos processos seletivos e alta qualificação, os aplicativos eliminam esses altos custos de entrada, tornando-se uma via rápida e inclusiva para geração de renda.

Em outras palavras, é a forma mais rápida no mercado de trabalho brasileiro de gerar renda para quem necessita. Essa acessibilidade é crucial para trabalhadores que, em outras condições, estariam sujeitos à instabilidade financeira ou ao desemprego prolongado, situações que, segundo uma literatura consolidada, estão associadas a maiores níveis de estresse, ansiedade e isolamento social.

É claro que este artigo aborda apenas algumas das dimensões dos custos envolvidos em um possível cenário de encerramento das operações das plataformas devido a mudanças regulatórias. Contudo, a possibilidade desse cenário se materializar é real, como demonstram experiências internacionais. Diante disso, é imprescindível que o debate jurídico sobre as plataformas de transporte ultrapasse a mera adaptação das normas trabalhistas existentes e incorpore as especificidades tecnológicas e econômicas do setor.

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O Supremo Tribunal Federal, ao analisar o Recurso Extraordinário 1.446.336, terá a oportunidade de acelerar esse debate que já está ocorrendo no âmbito legislativo através do PLP 12/2024. É fundamental estabelecer diretrizes legais que equilibrem a proteção dos direitos dos trabalhadores com a preservação da inovação, garantindo que motoristas, sendo classificados como autônomos contratados, continuem a se beneficiar da autonomia e das oportunidades econômicas proporcionadas pelo modelo atual.

Por fim, qualquer proposta regulatória deve ser fundamentada na experiência internacional e em uma análise de custo-benefício respaldada por evidências empíricas. É essencial que o processo regulatório envolva diálogo com todos os atores impactados, evitando retrocessos que possam comprometer os avanços alcançados em mobilidade urbana, geração de renda e inclusão econômica. O futuro das plataformas digitais exige uma abordagem regulatória moderna e alinhada às demandas da sociedade brasileira.