No último dia 12 de junho, o município do Rio de Janeiro aprovou uma lei sobre saúde sexual e reprodutiva que torna oficial a entrada do poder público na multiplicação de desinformação sobre aborto. A Lei 8.936/2025 obriga a afixação de placas ou cartazes nas unidades e instituições municipais de saúde (hospitais, clínicas de planejamento familiar e unidades básicas de saúde) com informações sobre aborto.
A norma define que os cartazes ou placas informativas devem conter os seguintes dizeres: “Aborto pode acarretar consequências como infertilidade, problemas psicológicos, infecções e até óbito”; “Você sabia que o nascituro é descartado como lixo hospitalar?”; e “Você tem direito a doar o bebê de forma sigilosa. Há apoio e solidariedade disponíveis para você. Dê uma chance à vida!”.
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
Essas mensagens não são informação em saúde, tampouco proteção de direitos. Os conteúdos são estigmatizantes e misturam questões técnicas com questões morais. A adoção não é uma alternativa ao aborto, não é uma preferência, é uma necessidade de saúde que, em cenários de criminalização do aborto, termina por ser articulada para pressionar as mulheres a seguirem um caminho que falseia a maternidade compulsória.
O texto que estará nas instituições de saúde desrespeita o luto no caso de perda gestacional e aborto legal e confunde a população. Se pensarmos no aborto legal, a indução à gestação após estupro configura violência obstétrica. Estudos científicos demonstram que insistir na continuidade da gestação em contraposição ao desejo da gestante compromete sua saúde física, mental e econômica.
Conforme o Código Civil e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o sistema jurídico brasileiro só protege a vida após o nascimento. Nenhuma lei pode inverter o sentido das garantias individuais e mobilizar emoções em direção a questões de autonomia individual. É a desinformação forjada em proteção à saúde que constrange e afeta à saúde mental das mulheres.
A Abordagem Abrangente em Saúde Sexual e Reprodutiva[1] tem como uma de suas estratégias a redução de danos do aborto inseguro. A criminalização do aborto não altera o fato de que mulheres e pessoas com útero enfrentam gestações indesejadas que, sem o aconselhamento adequado, pode levar à interrupção da gestação de maneira insegura, colocando em risco sua saúde e a vida. As instituições de saúde e seus profissionais têm o dever de acolher e informar essas mulheres a partir de um acolhimento baseado em direitos capaz de revelar as condições e o sentido que a mulher atribui aquela gravidez.
Negar informação que possa evitar que uma mulher recorra a práticas inseguras fere o Código de Ética Médica. O Uruguai foi pioneiro na América Latina ao garantir às mulheres o acesso ao aconselhamento e informações sobre métodos de aborto auto induzido mais seguros. A política de redução de danos uruguaia foi anterior à legalização do aborto ocorrida em 2012.
A justificativa do projeto de lei que deu origem à Lei 8.936/2025 menciona o valor da informação como direito fundamental de todos os cidadãos. Não há qualquer menção às mulheres e pessoas com útero na lei, o texto regula informações sobre aborto como se a interrupção de uma gestação indesejada não envolvesse pessoas e suas circunstâncias de vida digna. O aborto é tratado como um procedimento de saúde no vácuo humano, sem conexão com as mulheres.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
A Lei 8.936/2025 é inconstitucional, ela desrespeita o direito fundamental à autonomia individual, o direito à informações públicas corretas e o direito à igualdade de gênero. Os parlamentares que aprovaram essa norma conhecem a sua inconstitucionalidade, sabem que políticas públicas sociais não podem assediar cidadãs e cidadãos em direção a concepções de vida contrárias aos direitos humanos.
Essas senhoras e senhores estão cientes que mulheres e pessoas com útero, ao entrar adoecidas e em busca de prevenção em instituições de saúde, serão alvo de perguntas invasivas sobre escolhas individuais. Essa lei reforça a posição dos profissionais de saúde como possíveis objetores de consciência. Se há uma lei que alerta sobre a doação das crianças, o que impedirá que essa informação se transforme em pressão ou coação?
Há alguns anos, o movimento feminista têm desenvolvido políticas comunitárias de redução de danos do aborto inseguro, têm esclarecido os profissionais de saúde de que a informação segura é um direito das mulheres e têm apostado na atenção primária como um espaço estratégico de acolhimento e redução de danos do aborto inseguro.
A aprovação da Lei 8.936/2025 utiliza a normatividade do direito para impedir o movimento feminista de proteger a saúde das mulheres a partir do direito fundamental à informação. É urgente que os tribunais a declarem inconstitucional.
[1] Bloco A, Grupo Nacional de Especialistas em Saúde Sexual e Reprodutiva, Grupo Curumim, Global Doctors For Choice/Brasil, e Anis. Abordagem Abrangente em Saúde Sexual e Reprodutiva baseada em direitos e evidências científicas . Bloco A, 2023. Disponível em: https://blocoa.org/wp-content/uploads/2023/06/Documento-politico-advocacy-FINAL-25-jun-1.pdf