As oportunas diretrizes do CNJ para expedição e pagamento de precatórios

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No último dia 5 de agosto, o plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se manifestou e encerrou um importante capítulo de um processo administrativo que começou ruidoso. A partir de uma decisão do corregedor Nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, proferida cerca de um mês antes, houve uma suspensão em cascata de bilhões de reais em precatórios expedidos, causando pânico na comunidade jurídica e financeira de modo geral. Tudo com base numa interpretação equivocada da decisão cautelar proferida pelo corregedor.

Entretanto, na manifestação do colegiado, a partir do cauteloso voto do próprio corregedor, relator do caso, o que se viu foi a consolidação de importantes balizas sobre como devem agir os magistrados e quais requisitos devem ser seguidos na expedição dos ofícios requisitórios de precatórios e, consequentemente, nos pagamentos deles.

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Os recados muito claros do CNJ foram os seguintes: (i) não se pode expedir precatórios antes de decisão definitiva do Judiciário; (ii) os precatórios com valores incontroversos devem, sim, ser expedidos, sem óbice; (iii) o ente público, por sua vez, continua sendo devedor e, como todo aquele que se encontra nesta situação, tem a obrigação de efetuar o pagamento tempestivamente e não pode se valer de expedientes protelatórios para evitá-lo.

O julgamento tornou ainda mais cristalina essa realidade já sedimentada nos Tribunais no sentido de que, embora previsto em dispositivos legais e respaldado pela jurisprudência, vinha sendo alvo de confusão — e até de alarmismo —, inclusive entre advogados e magistrados.

De fato, após a primeira decisão do CNJ houve alguma fumaça no horizonte, com juízes cancelando precatórios regulares e dando uma interpretação muito maior – e, em alguns casos, completamente diferente — daquilo que havia sido decidido pelo ministro corregedor. Na metáfora utilizada, no julgamento, pelo ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ, alguns juízes Brasil afora estavam sendo “mais realistas do que o Rei”.

A discussão, desde o início, envolvia a legalidade da expedição de precatórios antes do trânsito em julgado da decisão que rejeita a impugnação a cumprimento de sentença. No entanto, o que o corregedor Nacional de Justiça deixou claro em seu voto, acompanhado pela unanimidade dos demais conselheiros, foi a reafirmação de que, havendo a sentença já transitada em julgado na fase de conhecimento e também havendo, por sua vez, a Fazenda Pública, ainda que por omissão, reconhecido a existência de valores incontroversos (ainda que parciais), o magistrado pode (rectius, deve) expedir o precatório correspondente.

A solução, muito bem lançada, não traz qualquer inovação na normatização do sistema de expedição e pagamento de precatórios — mas apenas vem reafirmar, com coerência e de acordo com os princípios constitucionais, as garantias da coisa julgada e da duração razoável do processo, assim como da eficiência e da moralidade administrativa.

Além da leitura do seu voto, o próprio corregedor esclareceu que, após sua decisão concedendo medida cautelar demandada pela União, “houve um certo pânico jurisdicional e isso fez com que alguns magistrados, por cautela ou por zelo em excesso, (…) resolvessem tomar atitudes que desbordam do que eu decidi”.

O corregedor Nacional de Justiça afirmou, ainda, que “(…) não posso[deria], na atividade administrativa que exerço [como corregedor], tomar uma atitude discrepante daquela que eu tomo lá na [atividade] jurisdicional, na Seção de Direito Público do STJ, em que sempre defendi a efetividade da prestação jurisdicional como do que, desculpe o linguajar bem vulgar, de ‘quem ganha, leva’ – e não se postergar, ad aeternum e in memoriam, essas contas que saltam aos olhos, com números extraordinários, mercê, em grande parte, da recalcitrância do Estado em cumprir com sua parte e devolver – não é pagar, é devolver – ao lesado aquilo que lhe é devido”.

Além de o voto do relator ter encontrado total convergência no plenário, alguns conselheiros fizeram, ainda, questão de enfatizar pontos relevantes, como o conselheiro Ulisses Rabaneda, que se manifestou no seguinte sentido: “O que é preciso se repetir e, em razão dessa clareza, eu não tenho dúvida nenhuma em acompanhar o douto corregedor, é que os precatórios irregulares são aqueles sem trânsito em julgado e sem reconhecimento de parcela incontroversa. O corregedor apontou exatamente essas circunstâncias. Havendo reconhecimento de parcela incontroversa, o precatório pode ser expedido conforme posição do Supremo e conforme a decisão do douto corregedor”.

O conselheiro Marcello Terto e Silva, por sua vez, também fez alusão a um “certo pavor sistêmico” após a decisão inicial, mas pontuou, também acompanhando o relator, que “nenhuma medida de ordem correcional pode ser aproveitada dentro do sistema de Justiça como um modo de permitir, por exemplo, (…) estratégias ou estratagemas, digamos assim, do devedor para impedir que os créditos sejam efetivamente constituídos e satisfeitos”.

A todo momento o julgamento do CNJ foi cuidadoso ao reiterar a importância do trânsito em julgado na fase de conhecimento como marco intransponível para rediscussão do mérito. A partir desse momento, o que cabe é a efetivação do direito — e se parte dele já está claramente delimitado e reconhecido, inclusive pela própria Fazenda, não há justificativa razoável para se retardar a quitação da obrigação a partir de artifícios procedimentais utilizados em abuso de direito de impugnação.

A prática, muitas vezes vista, da Fazenda Pública em apresentar impugnações genéricas, rediscutir o já decidido ou de lançar dúvidas artificiais ou repetidas em torno da liquidez de valores já admitidos constitui, na verdade, estratégia de litigância protelatória e até mesmo temerária, que a processualística moderna repugna cada vez mais.

Nas corretas palavras do conselheiro Marcello Terto e Silva, há mesmo uma “litigância abusiva” por parte dos entes públicos: “O sistema tem que conter e inibir esse tipo de atuação, porque o Judiciário não serve de instrumento de moratória a ente federado algum. O Judiciário tem que resolver e preservar a autoridade das suas decisões, e as obrigações de pagar nada mais são do que isso”.

É nesse ponto que a decisão do CNJ avança, ao reforçar, ainda que implicitamente, a necessidade, expressamente prevista em lei (CPC, art. 535, IV), de o ente público, intimado a impugnar os cálculos, que apresente os valores que entende sejam devidos de forma clara, objetiva e tempestiva, sob pena das consequências (i.e., sanções) de eventuais omissões ou ambiguidades em suas manifestações.

Não é demais dizer que o CNJ, em outras palavras, chegou à conclusão, na linha defendida no processo civil constitucional, que o tempo do processo não pode ser manipulado pelo devedor ao sabor das suas vontades. Os precatórios são instrumentos constitucionais de efetivação das decisões judiciais e jamais podem servir como obstáculo para impedir ou retardar o adimplemento das condenações transitadas em julgado.

O reconhecimento de valores incontroversos, mesmo parciais, deve ter como consequência, sim, a expedição imediata do precatório correspondente, ainda que pendente impugnação sobre o restante. Essa é a lógica de um sistema que respeita a jurisdição, a coisa julgada e o direito do credor de receber o que lhe é devido, num processo que tenha uma duração razoável.

Ao juiz, portanto, cabe agir com firmeza. É preciso reforçar a aplicação de sanções processuais e materiais às condutas protelatórias da Fazenda Pública, inclusive com a devida comunicação aos órgãos de controle quando houver indícios de desvios reiterados de conduta.

Nessa mesma linha, quando se observar que a sentença exequenda nada mais faz do que aplicar jurisprudência do STF ou do STJ, aguardar o trânsito em julgado no cumprimento de sentença é evidentemente desnecessário. O moderno sistema processual de precedentes foi elaborado justamente para conferir estabilidade, previsibilidade e rapidez no alcance de soluções às questões submetidas ao Judiciário — não para ser ignorado em abuso do direito de impugnação.

É fundamental, além disso, que se garanta tramitação prioritária aos recursos nas fases de execução (i.e., impugnação ao cumprimento da sentença). Não se trata apenas de expedir o precatório, mas de garantir que os recursos interpostos não atrasem artificialmente o acesso do credor ao que lhe é devido.

Lembre-se: o credor da Fazenda Pública já se encontra numa situação de muita desvantagem, uma vez que já submetido à regra do pagamento de precatórios ou de requisições de pequeno valor, como não ocorre a nenhum outro credor. Eternizar as fases de cumprimento e liquidação de sentença apenas terá o único efeito, evidentemente ilegal, de impossibilitar que os verdadeiros prejudicados recebam os valores a eles devidos ainda em vida, no caso das pessoas físicas, ou ainda enquanto operacionais, como muitas vezes se vê no caso das pessoas jurídicas.

Por fim, é preciso compreender que o verdadeiro risco institucional não está na expedição dos precatórios de valores incontroversos, mas na hesitação do Judiciário em fazê-lo. A Constituição é clara: quem deve, tem que pagar.

O respeito à coisa julgada, à eficiência da Administração Pública e à moralidade administrativa não são meros princípios programáticos ou ideológicos, mas garantias concretas contra a inércia estatal. No que diz respeito a esse tema, o CNJ apenas reafirmou o óbvio, para a segurança jurídica: a execução parcial do julgado é possível, legítima e, em muitos casos, necessária para preservar a integridade do sistema de justiça.