A transição energética já está ocorrendo a pleno vapor. De um lado, setores consolidados estão passando por mudanças estruturais: embora possa soar contraditório, uma das grandes metas da indústria do petróleo é descarbonizar suas operações. De outro, um volume cada vez maior de investimentos está sendo direcionado à expansão de indústrias que já existiam (como a mineração de lítio e a geração de energia eólica) e criação de outras (como é o caso do promissor hidrogênio verde).
Com isso, muitos já antecipam o surgimento de novos tipos de arbitragem, especialmente considerando que essa forma de resolução de disputas é vista como a mais adequada pelo setor de energia[1]. Mas será que essas novas arbitragens são realmente novas?
1. As novas-velhas disputas
Uma forma de ver a questão é tratar como novidade aquelas disputas que digam respeito a setores importantes para a transição energética. Essa é a abordagem observada em relatórios da International Chamber of Commerce sobre “disputas relacionadas à mudança climática”[2] e da Stockholm Chamber of Commerce sobre “disputas das tecnologias verdes”[3]. Ambos utilizam, como um dos critérios principais, o tipo de indústria e sua relação com a transição energética.
Contudo, boa parte dessas disputas não representa propriamente uma novidade. Tomemos as arbitragens investidor-Estado como exemplo: o indeferimento de uma licença ambiental pode inviabilizar tanto a instalação de um aterro sanitário quanto de um avançado parque eólico offshore[4]. Ou, usando um exemplo do relatório da SCC, as alterações regulatórias feitas pela Espanha no setor de geração solar não são distintas das mudanças abruptas que a Argentina promoveu, em vários setores econômicos, na década de 1990. Em suma, novas indústrias e novos contratos não significam necessariamente novos problemas jurídicos.
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Obviamente, isso não significa que o surgimento e expansão de indústrias da transição seja irrelevante. O grande diferencial aqui parece ser a falta de especialização técnica em indústrias menos maduras e, consequentemente, a menor disponibilidade de árbitros e peritos com conhecimento sobre o tema. Será muito mais difícil, por exemplo, indicar profissionais especializados na construção de um grande parque eólico em alto mar do que no setor de seguros ou em contabilidade empresarial.
Em suma, para essas novas-velhas disputas, parece que a dificuldade vai se referir mais a aspectos mercadológicos da arbitragem, do que propriamente ao enfrentamento de novos problemas jurídicos.
2. As novas disputas realmente novas
Na nossa opinião, as novas disputas da transição energética são aquelas que carregam uma real inovação jurídica em relação à prática atual. Aqui, o céu é o limite, pois nós, advogados, somos criativos por natureza. De qualquer maneira, há duas situações interessantes e que já podem ser mapeadas como problemas jurídicos novos.
a) Arbitragens societárias
O primeiro exemplo vem da arbitragem societária – isto é, procedimento decorrente de uma cláusula compromissória inserida no estatuto social da empresa e que abrange conflitos internos à sociedade. Atualmente, esse mecanismo assumiu tanta relevância que companhias do Novo Mercado da B3 devem possuir cláusula compromissória em seus estatutos, havendo ainda instituições arbitrais que possuem um regulamento próprio para esse tipo de disputa, como é o caso da CAM-CCBC[5].
Pode-se imaginar, nessa situação, que ativistas ambientais adquiram ações de uma empresa de petróleo cujo estatuto social possua cláusula arbitral e, com base na recém adquirida condição de acionistas, iniciem uma arbitragem para cobrar da companhia um rigor maior na sua estratégia de migração para fontes renováveis de energia.
Longe da realidade? Nada disso. Uma disputa do tipo já foi movida por ONG contra a Shell, perante o Judiciário inglês, sob o argumento de que a empresa não estaria tomando providências adequadas para mitigar a mudança climática e viabilizar a própria sobrevivência da companhia[6].
Embora essa disputa tenha sido iniciada no Poder Judiciário, é possível que a crescente adoção de cláusulas compromissórias em estatutos sociais, sobretudo quando conjugada com normas ESG, resulte em arbitragens com a mesma temática. E aqui haveria uma novidade bem relevante: questões de interesse público seriam o aspecto central do mérito da arbitragem, o que pode gerar desconforto na atuação dos árbitros.
O novo problema, portanto, seria como compatibilizar uma forma discreta e privada de solução de disputas, que sempre foi o racional por trás do uso da arbitragem, com a solução de questões factuais e jurídicas que extrapolam o contrato e os interesses imediatos das partes envolvidas
b) Arbitragens entre investidor e Estado
O segundo exemplo é próprio de arbitragens de investimento[7], que contrapõem investidores estrangeiros e governos. O cumprimento de compromissos internacionais relacionados à transição energética demandará uma postura cada vez mais ativa e urgente dos Estados. E isso provavelmente significa restringir ou proibir atividades econômicas que sempre foram autorizadas ou até incentivadas.
Esse é justamente o pano de fundo de duas arbitragens de investimento movidas contra a Holanda. Nos recentes casos RWE e Uniper, investidores internacionais buscam compensação financeira pela edição de lei que determinou o fechamento de usinas térmicas a carvão até 2030. Em paralelo, as mesmas disputas foram submetidas ao Judiciário holandês, em ações que foram julgadas improcedentes no final de 2022.
Esse tipo de litígio apresenta dois problemas para a transição energética. Primeiro, os árbitros não estão vinculados à solução dada pelo Judiciário local: ao contrário, já houve casos em que decisões judiciais foram consideradas elas próprias como atos contrários ao Direito Internacional. Segundo, a inconsistência no tratamento de temas semelhantes por decisões arbitrais gera insegurança jurídica, pois nem Estado ou investidor tem condições de prever o resultado da disputa. Portanto, essas disputas apresentam clara tensão com políticas públicas que buscam concretizar a transição energética.
Mas a real inovação jurídica diz respeito a uma mudança estrutural na operação jurídica realizada pelos árbitros. Tradicionalmente, o parâmetro decisório sempre foi a proteção que o tratado internacional conferia aos investidores. Agora, parece inevitável incluir no escopo da legislação aplicável, talvez até como elemento mais relevante, as várias normas de Direito Internacional Público que obrigam a todos – governos e investidores – que exerçam seu papel na mitigação da mudança climática.
3. Conclusão
Não há dúvidas de que a transição energética criará um universo novo de disputas, que encontram na arbitragem o seu habitat natural. A grande questão é identificar quais dessas disputas representam novidades efetivas para a prática atual: essas, sim, poderão ensejar algum tipo de disrupção, por envolverem mudanças profundas na operação jurídica realizada pelos tribunais arbitrais.
[1] Segundo a pesquisa “Future of International Energy Arbitration”, publicada pela Universidade de Queen Mary em 2022, a arbitragem foi indicada como “o fórum mais adequado para solucionar disputas no setor de energia” (https://arbitration.qmul.ac.uk/research/2022-energy-arbitration-survey).
[2] Conforme publicação “Resolving Climate Change Related Disputes Through Arbitration and ADR”, lançado em 2019 e disponível em https://iccwbo.org/wp-content/uploads/sites/3/2019/11/icc-arbitration-adr-commission-report-on-resolving-climate-change-related-disputes-english-version.pdf.
[3] Vide publicação “Green Technology Disputes at the SCC Arbitration Institute”, lançado em 2022 e disponível em https://sccarbitrationinstitute.se/sites/default/files/2022-12/report_green_technology_disputes.pdf.
[4] Vide, respectivamente, as sentenças dos casos Metalclad v Mexico (2000) e Windstream v Canadá (2016).
[5] https://ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/norma-complementar-02-2023/.
[6] https://www.clientearth.org/latest/latest-updates/news/we-re-taking-legal-action-against-shell-s-board-for-mismanaging-climate-risk/.
[7] Para uma explicação sobre o que são arbitragens de investimentos, conferir o artigo anterior publicado em https://www.migalhas.com.br/coluna/observatorio-da-arbitragem/392546/arbitragens-de-investimento-x-arbitragens-contratuais.