A Constituição Federal de 1988 (CF/88), em seu art. 22, inciso XXVII, estabelece que compete privativamente à União legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Há fervoroso debate acerca de qual seria o limite da União ao exercer referida competência, de modo a não avançar na prerrogativa dos demais entes, que poderiam legislar da maneira que bem entendessem relativamente a normas específicas, desde que observada a moldura das normas gerais, em observância à autonomia federativa.
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Considerando a Lei 8.666/1993, que materializa o dispositivo constitucional aludido, muito se escreveu a respeito de quais de seus artigos deveriam ser considerados normas gerais – incidindo sobre todos os entes – e quais deveriam ser considerados normas específicas – incidindo somente no âmbito da União –, abrindo espaço para regulamentação diversa por parte dos outros entes federativos.
O tema ganhou tração novamente com o advento da Lei 14.133/2021 – Nova Lei de Licitações e Contratos (NLLC) –, que detalhou ainda mais o regramento das contratações públicas, positivando de maneira evidente normas específicas como se fossem, no dizer de seu art. 1º, “normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
Para além de uma investigação doutrinária e jurisprudencial, já fartamente empreendida por diversos competentes autores, vale conferir o olhar apresentado pelo Ministro do TCU Antonio Anastasia, em evento promovido pela Corte de Contas Federal nos dias 20 a 22 de setembro deste ano, denominado “Seminário Compras Públicas – Boas Práticas, Inovação e Controle”.
No último dia do evento, o ministro, que foi o relator da NLLC no Senado Federal, fez considerações dignas de nota a respeito da abrangência federativa da norma, bem como sobre seu detalhamento.
De início, ponderou que a Federação brasileira é ficta, pois não há espírito federativo, mas unitário, fruto de nossa história.
Logo em seguida, assumiu o ministro que “de norma geral a nova lei não tem nada”. Claramente, disse Anastasia, a lei alcança não apenas questões que deveriam ser objeto de leis específicas dos entes federativos, mas até mesmo aspectos de nível regulamentar (infralegal), a exemplo dos artigos que cuidam do Sistema de Registro de Preços.
Quando da reflexão acerca da positivação do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) na NLLC, cujo regramento indubitavelmente afronta a autonomia federativa, vez que cristaliza obrigações procedimentais detalhadas a todos os entes, aventou-se, por esse motivo, a supressão do instrumento do texto final. Segundo Anastasia, diante dessa possibilidade, os “primeiros a reclamar” foram justamente os estados e municípios (tanto nos fóruns públicos quanto nos bastidores). Mencionaram a necessidade de unidade de procedimento e de segurança jurídica, ressaltando que quanto mais detalhadas fossem as obrigações, melhor seria.
Anastasia assinalou que o medo inibiu de tal forma a criatividade do gestor e do legislador dos entes federativos menores que terminou por gerar um apego à normatização federal, que, paradoxalmente, protege o gestor estadual e municipal, nos seus próprios dizeres.
Em suma, ponderou o ministro, foram dois os fatores que levaram à opção por uma norma detalhada e minuciosa: a colcha de retalhos anterior – várias normas sobre a matéria sem um vínculo de coerência –; e o clamor por segurança jurídica, que se materializaria na criação de uma norma que consolidasse as anteriores de maneira harmônica e positivasse a jurisprudência dominante do TCU, especialmente no que concerne ao planejamento. A preocupação central foi com o gestor que aplica a lei de licitações.
Por outro lado, considerando o contexto federativo brasileiro, há de se levar em conta as diferenças entre os entes. Não se pode comparar um pequeno município com algumas centenas de habitantes com o Estado de São Paulo ou com a União. Algumas das novas exigências da NLLC, especialmente as relativas à governança, devem ser lidas e exigidas com cuidado. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) requer, nesse sentido, análise, por parte do controlador, das circunstâncias nas quais o gestor está imerso. A NLLC foi desenhada para a esfera federal, para estados e para grandes municípios, que representam a maior parte do poder de compra brasileiro. Caso seja aplicada de maneira próxima a seus termos nesses entes, “será maravilhoso […] um grande avanço”, disse Anastasia.
A esclarecedora fala de Anastasia adiciona elementos realistas à reflexão acerca da abrangência do conceito de “normas gerais”, que, como se disse, tanta celeuma gerou e continua gerando. Ao fim e ao cabo, o alto grau de detalhamento que permeia a NLLC parece se relacionar ao anseio do gestor dos entes menores por segurança jurídica, no sentido de cobertura normativa para agir nos processos de contratação pública. Uma norma mais aderente aos limites teóricos do que se pode considerar “normas gerais” talvez não aplacasse a necessidade do agente público municipal ou estadual de um grau mínimo de certeza para atuar no perigoso âmbito das compras estatais, comumente associado ao medo de mancha indelével “no CPF”.
A enaltecida liberdade para agir, tão comum nas falas sobre o direito público brasileiro atual e, mais ainda, nos eventos relacionados às contratações governamentais, dá lugar, na vida prática das repartições, ao fetiche pela normatização – se nacional, melhor ainda.
De todo modo, aos entes que se sentem capazes e que desejam normatizar aspectos relativos a licitações e contratações de maneira diferente da que consta na NLLC, deve ser reservado espaço para tanto, e o debate segue aberto. Afinal, como ressaltado por Gustavo Binenbojm, a possibilidade de normatização diversa preserva “espaço de experimentação institucional, para testes de modelos inovadores nos níveis local e regional”, sendo adequado, para além das zonas de certeza positiva e negativa do conceito de “normas gerais”, que haja deferência judicial aos esforços legislativos e regulamentares subnacionais.
De uma forma ou de outra, imaginar que o “excessivo” detalhamento da NLLC foi um erro de técnica legislativa ou apenas reflexo de um viés autoritário ou centralizador da União parece, no mínimo, insuficiente.