Depois de muitos burburinhos a respeito dos deveres de imparcialidade, independência e revelação do árbitro decorrentes de claro intuito de ferir um instituto que vem contribuindo, e muito, para a solução de conflitos, entendi por bem escrever algumas palavras para relembrar conceitos importantes por trás desse assunto.
Nada melhor então para abordar a questão do que ir direto à lei, a começar pelo artigo 14 da Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307.1996), que prevê:
“Art. 14. Estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-se-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil”.
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O Código de Processo Civil prevê as hipóteses que configuram impedimento ou suspeição de juízes, porém a prática revela que essa questão é vista com ainda mais rigor na arbitragem, já que o art. 14, §1º da Lei nº 9.307.1996 dispõe que “as pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência”. Ou seja, qualquer fato que gerar às partes desconforto e insegurança em ter determinado profissional como julgador daquela disputa deve ser revelado.
É óbvio que, se o árbitro for cônjuge ou companheiro de um advogado ou da própria parte, não deverá aceitar o encargo. Mas por que dizer o óbvio? Simplesmente porque profissionais de grande renome, vistos por milhares de brasileiros em palestras e eventos importantes, citam exemplos absurdos tais como esse para ferir o instituto da arbitragem e a comunidade arbitral, que há anos luta para contribuir para a resolução adequada de conflitos.
O que é importante que se saiba é que o número de impugnações de árbitros é insignificante, e as impugnações aceitas, menor ainda – conforme recente pesquisa elaborada pela ilustre Professora Selma Ferreira Lemes, intitulada “Arbitragem em Números: pesquisa 2021-2022 realizada em 2023”, ao contrário do que se tem tentado fazer crer.
Pois bem. Quando o profissional for indicado para atuar como árbitro, deve obter informações relevantes na disputa a respeito das partes e seus procuradores, a fim de verificar se já foi advogado de uma das partes, se já atuou em algum trabalho remunerado para uma delas, se tem interesse pessoal ou econômico na disputa, etc. Caso tenha tido algum vínculo, deve revelar ou recusar a nomeação, a depender do caso concreto. É importante ressaltar que esse dever de imparcialidade e independência deve permanecer durante todo o procedimento arbitral até o seu término.
Quanto às hipóteses que podem ensejar a ausência de independência e imparcialidade, faço referência expressa às diretrizes da IBA sobre Conflitos de Interesses em Arbitragem Internacional, que funcionam como orientações internacionais para o assunto. E embora sejam diretrizes, sempre funcionaram muito bem e têm aplicação universal. Por que no Brasil há quem queira que seja diferente? Seria por causa dos maus perdedores insatisfeitos com o resultado que tiveram em arbitragens recentes? Ou seria por causa do jeitinho brasileiro? Ou os dois? Estava lendo um artigo bem interessante do Mario Sergio Cortella sobre o “jeitinho brasileiro”, no qual ele diz que essa expressão tem duas vertentes: a positiva, que consiste no famoso jogo de cintura de não se deixar amarrar em determinada situação, e a negativa… Ah, essa é perigosa, ou nas palavras dele, “é um atalho arriscado, porque esse modo de driblar a norma raramente é indicador de flexibilidade”[1].
Seria esse o caso dos constantes bombardeios que a arbitragem vem sofrendo?
Mas não podemos perder o fio da meada em reflexões como essa… por isso volto ao tema: além das previsões acima indicadas, é preciso citar as recentes diretrizes do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) sobre o dever de revelação do árbitro, que trouxeram contribuições importantes para os aplicadores da arbitragem, e uma que, particularmente, entendo ser bastante válida é essa[2]:
“6. Até a aceitação ou confirmação do(a) árbitro(a), as partes têm o ônus de se informar a respeito de fatos públicos e de fácil acesso, podendo realizar pesquisas por conta própria para se assegurar do correto exercício do dever de revelação pelo(a) árbitro(a), desde que o façam por meios lícitos e idôneos, no curso da arbitragem, devendo arguir quaisquer questões relativas à independência ou à imparcialidade do(a) árbitro(a) na primeira oportunidade que tiverem de se manifestar”.
O que essa previsão significa? Por que ela foi criada? Na minha humilde visão, para evitar que a parte que obtém uma decisão arbitral que lhe seja desfavorável, alegue a existência de parcialidade do árbitro com base em fatos públicos e notórios, na tentativa frustrada de invalidar ou anular a decisão. Cito como exemplo de alegação descabida, o fato de um árbitro estar no mesmo evento de arbitragem em que o advogado da contraparte estava ou de estar no mesmo painel para debater determinado assunto – o que, por si só, não é capaz de acarretar a “dúvida justificada”.
Então, para evitar que casos absurdos como esse aconteçam – abarrotando ainda mais o Judiciário com ações anulatórias “sem pé nem cabeça”, a recomendação foi para que as partes também façam sua devida investigação.
Depois de tanta reflexão a respeito desse assunto, vejo que as críticas à arbitragem – travestidas de alegações de aprimoramento ao instituto –, não têm fundamento em legislações, normas, princípios e diretrizes internacionais aplicáveis, que permeiam esse método adequado de solução de conflitos.
Em verdade, desconsideram por completo o fato de que a arbitragem é um instituto que surgiu há séculos. Há evidências históricas de que foi utilizada para resolver disputas entre estados e entidades estatais na Grécia Antiga, Roma, Pérsia e Mesopotâmia. E que tem funcionado muito bem no nosso país. A propósito, a arbitragem atingiu números históricos no Brasil, com bilhões de reais envolvidos nas disputas, revelando a confiança crescente no instituto[3].
Isso é especialmente relevante em um país que enfrenta o que o ministro Luís Roberto Barroso chama de “epidemia de judicialização”[4], com disputas judiciais que ultrapassaram 31 milhões de novos casos só em 2022[5], e que adora uma burocracia.
Bom, eu quero crer que, diante de tudo isso, os métodos adequados de solução de conflitos, como a arbitragem, devem ser abraçados e aplicados, sobretudo por grandes empresas de relevância no mercado, e não confrontados com alegações infundadas.
Isso significa dizer que a arbitragem está imune a defeitos? Certamente que não, mas temos que ficar atentos para que o jeitinho brasileiro ou maus perdedores, aliados ao oficialismo exacerbado, não joguem por terra anos de um histórico bem-sucedido de solução de conflitos para muitos.
E, com isso, encerro com algumas palavras do ministro Luís Roberto Barroso, no 1º Fórum Internacional de Arbitragem de Brasília, em 25 de outubro de 2023[6]:
“Existem maus perdedores na política, existem maus perdedores no Judiciário e maus perdedores na arbitragem” (…) “Eu vejo com grande reserva a interferência judicial em processos arbitrais” (…), “É sempre importante ter o cuidado de que interesses contrariados não mudem as regras de instituições que funcionem bem” e as minhas preferidas: “A advocacia do futuro está nos meios alternativos de solução de conflitos e na capacidade de negociação do advogado”.
[1] Disponível em: https://www.linkedin.com/pulse/jeitinho-brasileiro-mario-sergio-cortella%3FtrackingId=vvA9kLLtQdCxbngoc8C9Fw%253D%253D/?trackingId=%2Fx8c%2BdFYShG7ZV%2FwO2wLJg%3D%3D. Acesso em 25 de outubro de 2023.
[2] Disponível em: https://cbar.org.br/site/diretrizes-do-comite-brasileiro-de-arbitragem-cbar-sobre-o-dever-de-revelacao-doa-arbitroa/. Acesso em 25 de outubro de 2023.
[3] Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2023/09/08/arbitragem-bate-recorde-com-bilhoes-de-reais-em-disputa.ghtml. Acesso em 25 de outubro de 2023.
[4][4][4] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_Eld5nSYfPI. Acesso em 25 de outubro de 2023.
[5] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/com-315-milhoes-de-casos-novos-poder-judiciario-registra-recorde-em-2022/#:~:text=Ao%20se%20considerar%20apenas%20as,mais%20que%20o%20ano%20anterior. Acesso em 25 de outubro de 2023.
[6] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_Eld5nSYfPI. Acesso em 25 de outubro de 2023.