No último dia 10 de novembro, o Partido Novo ajuizou a ADPF 1.094, que se volta contra a prática institucional e o padrão de comportamento no uso das emendas de comissão (RP8) no orçamento de 2023. Em síntese, o partido sustenta que tais emendas representariam a continuidade da prática considerada inconstitucional pelo STF do denominado “orçamento secreto”, com os mesmos vícios das emendas de relator-geral (RP9) que ensejaram a declaração de inconstitucionalidade por ocasião das ADPFs 850, 851 e 854.
A petição inicial, repleta de gráficos e números, alega que houve um aumento expressivo das RP8 no orçamento de 2023, e que essas emendas estariam sendo desvirtuadas, o que implicaria afronta aos preceitos fundamentais da publicidade, da transparência, da impessoalidade, da moralidade, da eficiência, da equidade e da regionalização.
O partido afirma existir um estado de coisas inconstitucional caracterizado por diversos fatores: programações orçamentárias genéricas, supostamente sem a observância de critérios de definição de políticas públicas; concentração de recursos na Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo (CDR) do Senado Federal, presidida pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI); suposta inobservância de critérios populacionais e/ou socioeconômicos para a escolha dos estados e municípios beneficiários dos recursos. Por isso, o partido pede a suspensão da execução de R$ 6,48 bilhões do orçamento de 2023.
A ação foi distribuída ao ministro Alexandre de Moraes. No dia 20 de novembro, o relator pediu informações, nos termos do art. 5º, § 2º, da Lei 9.882/1999. A liminar deve ser apreciada em breve e o julgamento do caso será um grande teste, tanto para o STF quanto para o Congresso Nacional, na medida em que as emendas de comissão não são impositivas, ou seja, estão sujeitas a contingenciamento e naturalmente podem ser utilizadas no tomá-lá-dá-cá das votações. A mudança de atores no governo e na oposição pode ter seu peso.
Desde logo cumpre afastar as inconstitucionalidades levantadas pelo Novo. Vale registrar que foi a própria CF, art. 166, §§ 3º e 4º, que estabeleceu a prerrogativa do Poder Legislativo para propor emendas no processo de elaboração das leis orçamentárias. Essa é uma forma de controle parlamentar prévio do Poder Executivo que faz parte dos modelos democráticos. Além disso, também foi o texto constitucional (art. 166, caput) que deixou a definição dos ritos a cargo do regimento comum.
Nesse sentido, a atual norma que disciplina o processo legislativo orçamentário é a Resolução 1/2006, do Congresso Nacional. Essa norma trouxe as emendas de comissão nos arts. 43 e 44. Ou seja, não são uma “inovação” surgida no exercício de 2023. A única novidade foi o art. 5º da EC 126/2022, que permitiu a ampliação das dotações orçamentárias para atender às solicitações das comissões. Eis a justificativa para o “aumento” das RP8.
Inclusive, convém esclarecer que, após a decisão do STF nas ADPFs 850, 851 e 854, as dotações orçamentárias antes destinadas às emendas de relator-geral (RP9) foram realocadas para as emendas parlamentares individuais (RP6) e para o indicador de RP2, de natureza discricionária e não decorrente de emenda parlamentar. Não houve, portanto, transferência de recursos RP9 para RP8.
Quanto aos vícios sustentados, também cumpre esclarecer que a apresentação, discussão e aprovação dessas emendas de comissão se dão de forma pública, no âmbito de reuniões deliberativas específicas, abertas, documentadas em atas taquigráficas igualmente públicas (ver exemplos aqui e aqui), pelo que inexiste qualquer elemento de “orçamento secreto” no que diz respeito às emendas apresentadas pelas comissões da Câmara dos Deputados e do Senado.
Além de as RP8 terem que passar pelo crivo da própria comissão permanente correspondente, também precisam ser aprovadas pela Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO), o que, do ponto de vista deliberativo, implica uma inequívoca expressão da vontade parlamentar, alcançada de forma indiscutivelmente colegiada.
É do próprio arranjo constitucional (art. 58, § 1º) que as comissões – qualidade de órgãos colegiados fracionários das Casas Legislativas – exerçam, com toda legitimidade, funções relevantes e representativas do mister parlamentar, do que se extrai que inexiste inconstitucionalidade em que as comissões apresentem emendas orçamentárias quanto aos assuntos inerentes a suas atribuições.
Cumpre explicar ainda que a Resolução CN 1/2006 estabelece instâncias responsáveis pela verificação de eventuais irregularidades nas emendas apresentadas às matérias orçamentárias. Em primeiro lugar, conforme o art. 25, tem-se o Comitê de Admissibilidade de Emendas (CAE), ao qual compete propor a inadmissibilidade das emendas apresentadas, e cujos relatórios devem ser votados, em regra, antes da apreciação do mérito das respectivas matérias.
Persistindo eventual controvérsia sobre o descumprimento de normas constitucionais, legais ou regimentais durante a discussão da peça orçamentária, em segundo lugar, o art. 148 da Resolução CN 1/2006 estabelece a possibilidade de “contestação orçamentária”, instrumento que permite às minorias parlamentares constranger as maiorias, com vistas à observância das regras procedimentais e substantivas, dentro do locus adequado para essas discussões: o próprio Congresso Nacional.
Pela simples compreensão desse desenho, observa-se que inexiste qualquer identificação ou continuidade entre as emendas RP8 e as RP9. Diferentemente das RP9, as RP8 são apreciadas e aprovadas primeiramente no colegiado de cada comissão, de acordo com as respectivas áreas temáticas; depois são apreciadas pelos relatores setoriais e pelo relator-geral; e o relatório quanto à sua admissibilidade precisa ser aprovado na CMO e em sessão conjunta das Casas do Congresso Nacional.
Além disso, pela Resolução CN 1/2006, as RP8 se prestam ao aumento ou inclusão de programações nacionais relacionadas a políticas públicas, não estando limitadas à correção de erros ou omissões, como ocorria com as emendas RP9.
A propósito, vale esclarecer que a sigla “RP” se refere ao identificador de “Resultado Primário”, que é referência utilizada no orçamento, cujo propósito é auxiliar a apuração do resultado primário do governo federal e identificar, de acordo com a metodologia de cálculo das necessidades de financiamento do governo central, a natureza da despesa, nos termos do art. 7º, § 4º, da LDO de 2023.
Como se vê, inexiste concentração de poder nas mãos de um único parlamentar: as emendas de comissão são necessariamente colegiadas, aprovadas mediante deliberação coletiva de meus membros. Após a aprovação das RP8, considerando a natureza não impositiva dessas emendas, os presidentes de cada uma das comissões correspondentes atuam na qualidade de seus representantes, para garantir que a vontade previamente aprovada pelo colegiado seja concretizada.
Daí a previsão do art. 79, inciso I, da LDO de 2023, que coloca a figura do presidente da comissão como “autor” da emenda de comissão. A lógica da previsão é simplificar o processo das tratativas junto ao Poder Executivo com vistas à efetiva execução da RP8. Essa também é a lógica da Portaria Interministerial MPO/MGI/SRI-PR 1/2023, art. 37. Tais atribuições do presidente não devem ser confundidas como uma atuação monocrática ou unilateral exclusivamente sua, pois a decisão alocativa prévia foi fruto de um órgão colegiado: a própria comissão parlamentar.
No que diz respeito ao volume de recursos orçamentários da CDR, trata-se de valores compatíveis com a magnitude dos ministérios envolvidos: Ministério das Cidades, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional e o Ministério do Turismo, que têm enorme capilaridade nacional e alcançam todos os estados e Distrito Federal e todos os Municípios do Brasil.
Por outro lado, existem comissões cuja área temática vincula-se a apenas um Ministério, por exemplo, ou cuja área temática já conta com um regime constitucional próprio de transferência de recursos, como a saúde e a educação, o que justifica a disparidade de recursos entre as diversas comissões.
Sobre as programações orçamentárias genéricas, também objeto de reclamação na ADPF 1.094, sob a acusação de que essa prática perpetua o “orçamento secreto”, a Nota Técnica 43/2023 da Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal é didática em explicar que parte significativa das ações orçamentárias não identifica a destinação final dos recursos. Ou seja, “ações genéricas” não são uma exclusividade das emendas parlamentares, mas sim algo inerente ao cotidiano da execução orçamentária.
A própria LRF (art. 16, § 1º, inciso I) admite a figura do “crédito genérico”. Trata-se de uma clara sinalização no sentido de que as dotações genéricas não são um problema em si. Inclusive, a maior parte da LOA – mais especificamente, as maiores despesas da União, que são: o serviço da dívida, os benefícios previdenciários e o pagamento de pessoal – não indica quem são os beneficiários dos recursos. Não se espera, tampouco, que isso aconteça. A transparência fica garantida posteriormente, com a possibilidade de consultas aos sistemas que extraem informações da execução orçamentária, por intermédio dos quais é possível identificar os favorecidos pelos pagamentos.
Dessa forma, o caráter genérico das ações orçamentárias vinculadas às emendas RP8 não é algo aberrante, indevido ou irregular em si. Na verdade, trata-se de característica até mesmo esperada dentro do papel que tais emendas cumprem, pois o art. 44 da Resolução CN nº 1/2006 prevê que as emendas de comissão devem “ter caráter institucional e representar interesse nacional”. A condição impõe um limite e, na prática, impede que as comissões insiram alterações no PLOA com programações muito específicas ou localizadas. Esse foi o perfil que se pretendeu dar a essas emendas RP8.
O nível de detalhamento ou concretude que o Partido Novo reivindica é incompatível, não só com a prática, mas também com a própria lógica da Lei 10.180/2001, que disciplina os Sistemas de Planejamento e de Orçamento Federal. Mesmo quando a LOA não traga maiores detalhes – por exemplo, as informações sobre a forma de implementação, o tipo de objeto ou serviço que pode ser contratado, a base legal ou o tipo de beneficiário –, tais informações depois são disponibilizadas de forma aberta no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP).
Outros portais que também permitem o acompanhamento da execução orçamentária são: a Plataforma +Brasil, o sistema Fiscalize da Câmara dos Deputados, e o Siga Brasil do Senado Federal.
Quanto à identificação dos beneficiários, somente por ocasião da execução orçamentária é possível implementar a regionalização dos gastos, e existem dispositivos legais – notadamente o art. 79, § 1º, e o art. 72, § 2º, inciso V, ambos da LDO de 2023 – que garantem a observância da compatibilidade com o PPA e a LDO; o atendimento à legislação aplicável à política pública, bem como os critérios próprios desta; e, sempre que possível, dados da população e do IDH do ente da Federação. Cabe ao órgão gestor verificar se as indicações cumprem os requisitos legais. Ou seja, trata-se de uma obrigação compartilhada; não fica só por conta dos parlamentares.
Enfim, mais aspectos técnicos poderiam ser suscitados, mas tudo o que já foi exposto é suficiente para demonstrar a constitucionalidade da dinâmica orçamentária envolvida nas emendas de comissão (RP8) e a inexistência dos vícios associados às emendas RP9. Há farta documentação explicativa juntada nos autos nesse sentido, especialmente a que acompanha as informações enviadas pelo Senado.
Agora é aguardar para ver se o julgamento da ADPF 1.094 vai reproduzir as características do que foi realizado nas ADPFs 850, 851 e 854. Por tudo o que se viu aqui, as RP8 não são as novas RP9, mas depois do que houve por ocasião do denominado “orçamento secreto” já não é possível antever o que acontecerá.