A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) declarou a Argentina responsável por falhas na prevenção e na investigação do atentado cometido em 1994 contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia). O caso remete a um dos maiores ataques terroristas na história da região e até hoje impune que deixou 85 mortos em Buenos Aires em julho daquele ano.
O Tribunal considerou que o Estado argentino não adotou medidas para prevenir o ocorrido e tampouco cumpriu com seu dever de investigar o atentado e seu posterior encobrimento por autoridades com a diligência devida e em prazo razoável.
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A sentença foi divulgada na última sexta-feira (14/6), dois meses depois de a Justiça argentina determinar que o Irã teve participação no ataque contra a sede da Amia.
Na manhã de 18 de julho de 1994, um veículo com explosivos foi detonado nas imediações da sede da Amia e de outras instituições ligadas à comunidade judaica. Na ocasião, além das 85 vítimas fatais, ao menos 151 pessoas ficaram feridas.
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A investigação que se seguiu foi marcada por uma série de irregularidades. Na sentença, a Corte destaca que agentes estatais agiram de maneira articulada “para construir uma hipótese acusatória, sem fundamento fático”, o que favoreceu o encobrimento dos verdadeiros responsáveis e impediu a realização de uma investigação que permitisse às vítimas conhecerem a verdade.
Em 2019, uma investigação do Ministério Público local apontou que haveria um encobrimento do caso por parte de funcionários do Judiciário e do governo do ex-presidente Carlos Menem (1989-1999). Nunca foram esclarecidas, porém, as razões desse ocultamento.
“Quase 30 anos depois do atentado, ainda não há clareza sobre o acontecido, seus responsáveis e as razões pelas quais o Estado utilizou seu aparato judicial para encobrir e obstaculizar a investigação, fato pelo qual a Corte considerou que o Estado é responsável pela violação dos direitos à garantia judicial, a um julgamento imparcial, a um prazo razoável e à proteção judicial”, afirmou o Tribunal na sentença recém-divulgada.
Para a Corte, a Argentina não garantiu acesso real à documentação sobre o atentado. Além disso, violou o direito à verdade por múltiplas falhas na determinação da verdade histórica sobre o ataque e sua responsabilidade direta em manobras de ocultamento do caso.
Na sentença, o Tribunal destacou que o terrorismo coloca em perigo os direitos e liberdades das pessoas, e que a Convenção Americana obriga os Estados signatários a adotarem as medidas adequadas e necessárias para prevenir esse tipo de ato.
Considerou também que o Estado argentino tinha conhecimento da situação de risco real e imediato sobre locais relacionados à comunidade judaica e não adotou nenhuma medida para evitá-lo. Dois anos antes, a embaixada de Israel sofreu atentado simular, que deixou 29 mortos.
Para a Corte, a Argentina violou sua obrigação de prevenção e, portanto, os direitos à vida e à integridade pessoal em prejuízo das vítimas do atentado, além do princípio de igualdade e não discriminação. As demoras no processo sem justificativas, a falta de esclarecimento e a situação de impunidade dos verdadeiros responsáveis provocaram nos parentes das vítimas sentimentos de angústia, tristeza e frustração, ressaltou o Tribunal.
Reconhecimento do Estado
A Argentina reconheceu sua responsabilidade internacional. Em audiência realizada sobre o caso, o governo admitiu a responsabilidade pela violação de direitos denunciada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, assim como a violação do direito à integridade física, às garantias judiciais e à proteção judicial.
O Estado argentino reconheceu a falta de prevenção do ataque por não ter adotado medidas eficazes para tentar evitá-lo, levando em consideração que dois anos antes ocorreu o atentado contra a embaixada de Israel na Argentina.
A Corte determinou que o Estado argentino remova os obstáculos que mantêm o caso na “impunidade total”. Também ordenou a reabertura das investigações para “individualizar, julgar e sancionar” os responsáveis e estabelecer a verdade sobre o ocorrido. Além disso, diz a sentença, deve ser construído um arquivo histórico público sobre o atentado, seu encobrimento e o papel das associações de vítimas na elucidação do caso.
O Tribunal determinou ainda que sejam feitas reformas no país sobre leis que regem o uso de informação de inteligência como prova em causas judiciais e sobre o acesso à documentação.
“Em casos de violações de direitos humanos, as autoridades estatais não podem amparar-se em mecanismos como o segredo de Estado ou a confidencialidade da informação, ou em razões de interesse público ou segurança nacional para deixar de contribuir com a informação requerida por autoridades judiciais ou administrativas encarregadas da investigação ou processos pendentes”, afirmou a Corte na sentença.
Associações civis e de familiares de vítimas consideraram a decisão “histórica”. “Hoje um tribunal internacional ratificou que o Estado argentino violou os direitos humanos das vítimas e seus familiares e o direito coletivo à verdade, e que deve comprometer-se com as investigações e as medidas de reparação. Convidamos todos a nos acompanharem nessa luta para que finalmente o Estado argentino cumpra com suas obrigações, e a justiça, ainda que tardia, seja possível”, disseram em comunicado conjunto as associações Cels e Memória Ativa.
A composição da Corte para a emissão da sentença foi a seguinte: Nancy Hernández López (Costa Rica, presidente da Corte); Rodrigo Mudrovitsch (Brasil, vice-presidente); Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia); Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México); Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai) e Patricia Pérez Goldberg (Chile).
A juíza Verónica Gómez, de nacionalidade argentina, não participou do julgamento devido à norma da Corte que impede a participação de magistrados originários do país envolvido no caso.