Em outra oportunidade no JOTA, comentei como o trâmite simultâneo de reformas legislativas sobre arbitragem no Brasil e na Inglaterra demonstrava a distância institucional entre os dois países e a maturidade inglesa no assunto[1]. Contudo, se focarmos especificamente em arbitragens envolvendo o poder público, o cenário parece se inverter: enquanto no Brasil existe um microssistema razoavelmente consolidado com um escopo de disputas cada vez mais amplo, a Inglaterra pode ter uma jabuticaba para chamar de sua.
A particularidade inglesa está contida nas licenças outorgadas pelo Estado no setor de petróleo, que é uma das indústrias mais relevantes para o país. De acordo com a cláusula aplicável a todas as licenças emitidas a partir de 2008, quaisquer disputas entre regulador e empresa de petróleo podem ser solucionadas por arbitragem ad hoc e com árbitro único, desde que não seja matéria sujeita a apreciação, determinação, decisão, aprovação ou consentimento do regulador:
Se, a qualquer momento, surgir alguma disputa, diferença ou dúvida entre o Ministro ou a OGA e o Licenciado, em relação a qualquer assunto decorrente ou em virtude desta licença, ou em relação aos seus direitos e responsabilidades respectivos sobre o mesmo, então a questão será encaminhada para arbitragem, conforme estabelecido nos parágrafos seguintes, exceto nos casos em que esta licença determine expressamente que o assunto ou coisa a que se refere deve ser determinado, decidido, dirigido, aprovado ou consentido pelo Ministro ou pela OGA[2].
Algumas cláusulas contratuais podem precisar de um esforço interpretativo para se extrair seu real significado, por serem ambíguas ou lacônicas. Outras vezes, um dos contratantes defende que o que está escrito não significa realmente aquilo, ou que a literalidade do contrato diz algo diferente da verdadeira intenção das partes. Será que é esse o caso da cláusula arbitral, que ao mesmo tempo viabiliza e inviabiliza o uso da arbitragem?
A resposta é negativa, pois o entendimento do regulador inglês coincide com a literalidade da cláusula: matérias que envolvam algum tipo de apreciação estatal devem ser resolvidas no Poder Judiciário. Inclusive, essa posição foi confirmada recentemente pela High Court of Justice, apesar de os trechos tornados públicos não permitirem saber qual era o tipo de questão contratual controvertida[3].
Ou seja, embora a Inglaterra seja um fórum tradicional para arbitragem comercial e Londres uma das principais sedes no mundo inteiro, a abordagem parece se inverter quando tratamos de disputas contra o poder público inglês. Aliás, a situação é semelhante ao cruzar o Canal da Mancha, pois a França também possui uma notória visão pró-arbitragem, mas impõe restrições bem rígidas à sua utilização por entidades públicas[4].
Como antecipamos no primeiro parágrafo, essa abordagem restritiva contrasta com a evolução do tema no Brasil. Nos últimos 20 anos, o governo brasileiro adotou uma série de medidas legais e administrativas que viabilizaram e depois expandiram o uso da arbitragem em contratos públicos. Uma boa prova dessa virada é o fato de que discussões sobre reequilíbrio econômico-financeiro já foram consideradas questões inarbitráveis, enquanto hoje representam a principal questão de mérito nas arbitragens contra o poder público.
É verdade que o caso brasileiro ainda apresenta uma dificuldade prática, pois a Lei de Arbitragem limita o uso do instituto pela administração pública a questões de “direito patrimonial disponível”, algo que é de difícil definição. Ainda assim, é possível observar uma tendência de interpretação expansiva por parte da própria administração, como demonstra o amplo rol permissivo (e meramente exemplificativo) previsto no Decreto Federal 10.025/2019[5].
Existe um certo consenso, enfim, de que a arbitragem é uma ferramenta para atrair investimentos, o que torna sem sentido atribuir interpretações rígidas e limitadas da autorização legal. Neste ponto, recente artigo de opinião de Paula Butti, coordenadora de uma das equipes de arbitragem da AGU, foi certeiro ao defender que “é preciso extrair da expressão ‘direitos patrimoniais disponíveis’ um significado que garanta ao jurisdicionado a obtenção de uma decisão não apenas célere e técnica, mas que também seja segura”[6].
Voltando, então, ao caso inglês: a reduzida utilidade da cláusula arbitral inserida nas licenças de petróleo é uma jabuticaba que representa a baixa aptidão que aquele país tem para atrair investimento privado?
Sim e não. Sim, porque de fato não parece fazer sentido adotar uma cláusula arbitral tão limitada: se fosse transposta para a realidade brasileira, por exemplo, tornaria inarbitrável cerca de 80% das disputas. E não, porque a confiança privada na boa gestão do regulador inglês e na eficiência do Judiciário é tão elevada que compensa a impossibilidade prática de questionar atos de governo na via arbitral.
No mesmo sentido, empresas podem achar atrativo investir no setor de petróleo na Noruega, onde disputas contra o regulador tem que ser submetidas ao Judiciário norueguês, mas entender que a existência de cláusula arbitral é requisito indispensável para investir no Brasil, na Guiana ou em Angola.
O grau de atratividade de um país ou de uma indústria, portanto, depende de uma série de variáveis, que abrange – mas não se limita – a (in)existência e o maior ou menor alcance da cláusula arbitral inserida no contrato público. Jabuticabas inseridas em cláusulas arbitrais podem afugentar investidores, mas também podem não ter um efeito negativo sobre o grau de investimento de um país. De qualquer forma, por essas bandas de cá, esperamos que a moda não pegue.
[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/fish-and-chips-or-jabuticaba-a-lei-de-arbitragem-na-inglaterra-e-no-brasil-05122022.
[2] Tradução livre da cláusula citada no link AT & Ors v Oil & Gas Authority [2021] EWHC 1470 (Comm) (10 May 2021) (bailii.org).
[3] Vide mesmo link acima.
[4] A título de exemplo, entidades públicas francesas não podem participar de arbitragem internacional.
[5] Cf. art. 2º, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D10025.htm.
[6] https://www.migalhas.com.br/coluna/observatorio-da-arbitragem/397605/arbitrabilidade-objetiva-em-contratos-administrativos.