Arbitragem e Poder Judiciário

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Nos últimos anos, muitas dúvidas têm sido levantadas, em ambientes profissionais e acadêmicos, sobre o modo como o Poder Judiciário tem se relacionado com a arbitragem no Brasil. Há interferência excessiva da jurisdição estatal sobre a jurisdição privada? O que seria uma interferência excessiva? Como distinguir a interferência funcional daquela disfuncional? Essa relação indica algum risco para a escolha da arbitragem como solução mais técnica, rápida e definitiva para disputas contratuais?

Essas perguntas não podem ser respondidas de forma adequada a partir de uma discussão casuística, baseada na experiência pessoal ou em algumas decisões judiciais selecionadas – a chamada prova anedótica (anecdotal evidence). A melhor forma de entender a relação entre Judiciário e arbitragem é por meio de uma pesquisa empírica, que permita compreender como esse sistema está operando.

O Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) e a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) se uniram para trabalhar essas questões através de uma pesquisa empírico-quantitativa sobre as ações relacionadas à arbitragem julgadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). A pesquisa, agora lançada ao público e disponível nos sites do CBAr e da ABJ, analisou 289 processos não sigilosos julgados pelas varas especializadas em direito empresarial e arbitragem na comarca de São Paulo entre março de 2018 e novembro de 2022.

Esses processos foram divididos entre cinco categorias: ações anulatórias de sentenças arbitrais, ações sobre medidas de urgência, ações de cumprimento de sentença, ações de instituição da arbitragem e ações que questionam a convenção de arbitragem (ações de convenção). A pesquisa também analisou, entre esses processos, os 132 que tiveram decisões proferidas em recursos em segundo grau de jurisdição.

Como se verá, os resultados abaixo apresentados não apontam para uma interferência excessiva do Judiciário sobre a arbitragem. Ao contrário, as evidências indicam a existência de um equilíbrio dinâmico entre jurisdição estatal e arbitral, com um funcionamento dentro da normalidade.

Premissas

A pesquisa recorreu ao banco de sentenças públicas, o que suscita duas observações. Primeiro, ela não inclui processos sob segredo de justiça, mas assume que o perfil dos processos sigilosos é semelhante aos públicos. Segundo, ela não abrange os processos que ainda não tiveram sentenças proferidas, sendo, portanto, retrospectiva, isto é, não detecta eventuais mudanças ou tendências mais recentes decorrentes de ações movidas, mas ainda não julgadas.

Apesar dessas ressalvas, acredita-se que os dados analisados oferecem resultados esclarecedores e estatisticamente significativos porque, além de boa parte dos casos ser pública, as sentenças analisadas apareceram em quantidades muito próximas nas duas principais varas especializadas, indicando aleatorização dos dados.

Estrutura: proporções gerais das categorias de ações e de contratos

As ações judiciais relacionadas à arbitragem foram divididas em duas categorias: as ações de suporte, que incluem ações para instituição de arbitragens, medidas de urgência pré-arbitrais e cumprimento de sentenças arbitrais; e as ações de controle, que incluem ações de anulação de sentenças arbitrais e ações que questionam a convenção de arbitragem. A maioria das ações da pesquisa (148 ou 51,2% do total) buscou tutelas de suporte à arbitragem, enquanto 141 casos (ou 48,8% do total) veicularam ações de controle.

Os contratos em que pactuada a arbitragem também podem ser divididos em duas categorias, os contratos de colaboração e os contratos em geral. Os contratos de colaboração estão inseridos em um ambiente negocial próprio, no qual há padronização e relação de dependência econômica entre as partes. São os casos de contratos de franquia, cooperativas e concessionárias.[1]

A separação entre contratos de colaboração e os demais contratos é útil porque essas duas categorias apresentam padrões diferentes de judicialização, sendo os primeiros mais propensos a ações de relativização e os últimos mais propensos a ações de suporte. O conhecimento dos dados segundo esses padrões diferentes permite analisar separadamente cada uma dessas realidades. Dos 289 casos julgados, 217 (ou 75% do total) relacionam-se a contratos em geral e 72 (ou 25% do total) relacionam-se a contratos de colaboração.

Taxas de procedência das ações de controle x ações de suporte

Além de ligeiramente minoritárias, as ações de controle apresentam taxas de procedência distintas das ações de suporte. Para realizar a comparação, é preciso desconsiderar na análise as ações sobre medidas de urgência e de cumprimento de sentença, que não possuem um mérito principal autônomo a ser julgado procedente ou improcedente. Restam para a comparação as ações de convenção e de anulação, de um lado, e de instituição, de outro.

A pesquisa encontrou 46 ações de convenção, das quais 35 (ou 76% do total de ações de convenção) são oriundas dos contratos em geral e 11 (ou 24% do total de ações de convenção) são oriundas de contratos de colaboração. A proporção é esperada e acompanha a participação desses contratos no total de disputas analisadas. As ações de convenção foram extintas com fundamento na existência de cláusula compromissória em 60,8% dos processos oriundos de contratos em geral e em 90,9% dos processos oriundos de contratos de colaboração.

A extinção sem julgamento de mérito da significativa maioria das ações de convenção indica o suporte dado pelo Poder Judiciário à jurisdição arbitral. Além disso, as ações de instituição apresentam taxa de procedência igual a 100%, indicando a forte propensão do Poder Judiciário em auxiliar a constituição dos juízos arbitrais diante de cláusulas vazias.

Em particular, taxas de procedência nas ações anulatórias

A pesquisa identificou 93 ações anulatórias, das quais 59 (ou 63% do total de anulatórias) foram propostas com base em contratos de colaboração e 34 (ou 37% do total de anulatórias) foram oriundas de contratos em geral. Aqui existe uma clara inversão: apesar de representarem 25% do total de casos analisados, os contratos de colaboração respondem por 63% das ações de anulação.

As taxas de procedência das ações anulatórias também variam de acordo com o tipo de contrato. Nos contratos em geral, 17,7% das ações anulatórias foram julgadas procedentes no todo ou em parte, contra 59,3% de procedência (total ou parcial) nos contratos de colaboração. Essa maior taxa de procedência das ações anulatórias relacionadas a contratos de colaboração pode ser explicada pela maior assimetria entre as partes e por certas deficiências estruturais na formação dos tribunais e administração dos procedimentos.

Taxa de procedência não indica probabilidade de anulação

É importante destacar que a taxa de procedência das ações anulatórias é uma informação insuficiente e inadequada para explicar a relação entre Poder Judiciário e jurisdição arbitral. As discussões sobre o modo como o Judiciário vem tratando o tema da arbitragem não podem ser baseadas na percepção de que taxas baixas de procedência das ações anulatórias seriam a única evidência de correção das sentenças arbitrais proferidas e de respeito do Poder Judiciário por essa jurisdição privada. Essa seria uma visão equivocada.

Uma orientação consolidada da jurisprudência pela rejeição de ações anulatórias tem, como resultado de longo prazo, não uma taxa elevada de improcedência de ações anulatórias, mas uma taxa reduzida de judicialização das arbitragens. Afinal, é errado supor que os autores de ações anulatórias insistiriam em assumir os custos e riscos, em especial os sucumbenciais, decorrentes da propositura de ações anulatórias com baixa probabilidade de êxito. A reação esperada é que eles deixem de propor as ações e judicializem as discussões apenas em casos extremos.

Em outras palavras, consolidada nos tribunais a excepcionalidade da anulação, serão selecionadas para tentativa de invalidação apenas poucas sentenças arbitrais de casos muito peculiares, nas quais as partes realizem avaliações muito díspares sobre as chances de vitória. Tais ações serão relativamente raras quando comparadas ao total de arbitragens julgadas, mas, por terem passado por um processo rigoroso de seleção pelas partes e advogados, elas terão uma chance de procedência ponderável, que no limite tenderia a 50%.[2]

Portanto, a taxa de procedência das ações anulatórias não deve ser equiparada à probabilidade de anulação de uma sentença arbitral, nem do grau de deferência do Poder Judiciário à arbitragem. A taxa de procedência deve ser combinada com a taxa de impugnação das sentenças arbitrais para, ao final, chegar-se ao que seria a probabilidade de uma decisão arbitral ser invalidada no Poder Judiciário.

Taxa de impugnação de sentenças arbitrais e probabilidade de anulação

A grande maioria dos procedimentos arbitrais resulta em sentenças respeitadas e cumpridas espontaneamente pelas partes. No período abarcado pela pesquisa, foram proferidas 606 sentenças arbitrais em procedimentos administrados pelas principais câmaras dentro da jurisdição das varas analisadas.[3] No mesmo período foram detectadas 17 ações anulatórias públicas contra sentenças proferidas por essas mesmas câmaras, das quais 6 foram julgadas procedentes no todo ou em parte. Isso resulta numa taxa de impugnação das sentenças arbitrais de 2.8%.

Como a pesquisa se baseia apenas em ações que não tramitaram em segredo de justiça, essas quantidades estão em alguma medida subestimadas. Para corrigir essa subdocumentação, assumimos a premissa conservadora de que a quantidade real de judicialização seria três vezes superior àquela observada, o que gera uma taxa de judicialização estimada de 8.4%.

Assumindo que a taxa de procedência parcial ou total das ações anulatórias permaneceria estável no patamar de 17.7%, a probabilidade de anulação de uma sentença arbitral de um contrato em geral (que não seja de colaboração) seria igual à multiplicação dessas duas taxas, ou seja, 1.5%. Em outras palavras, pode-se dizer que a chance de que uma sentença arbitral venha a ser impugnada e anulada pelo Judiciário é de 1.5%.

O cálculo de probabilidade é apresentado apenas em relação às câmaras de arbitragem relacionadas a contratos em geral, as quais divulgam a quantidade de procedimentos e de julgados. Infelizmente, não foi possível realizar o cálculo em relação aos contratos de colaboração, por não termos levantamentos sobre os dados de processos pendentes perante essas câmaras setoriais.

A pesquisa aponta para a existência de uma relação equilibrada entre o Judiciário (ou ao menos o Judiciário de São Paulo) e a arbitragem. Ela indica que o Judiciário paulista tem atuado de forma complementar ao oferecer suporte à jurisdição arbitral ao julgar pedidos de medidas de urgência pré-arbitrais, de instituição de juízos arbitrais e de cumprimento de sentenças, respeitando o mecanismo de solução de disputas escolhido pelas partes e anulando sentenças arbitrais de forma excepcional.

[1] Forgioni, Paula. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 4ª edição: 2019, p. 179-207.

[2] A convergência, em dadas condições de funcionamento da justiça, para uma taxa de procedência de 50% foi descrita na literatura pela primeira vez por George Priest e Benjamin Klein e por tal razão ficou conhecida como hipótese de Priest & Klein. O postulado afirma que, em uma justiça na qual os precedentes são públicos, há custos para litigar e as partes têm autorização para celebrar transações, a taxa de procedência tende a 50% e a quantidade de ações tende a zero. Ver Priest, George e Klein, Benjamin. The selection of disputes for litigation, in J. Legal Stud. v. 13. 1984. pp. 1–55.

[3] Conforme levantamento feito pela Dra. Vera Cecília Monteiro de Barros junto às câmaras arbitrais que integram a pesquisa Arbitragem em Números de Valores, da Profa. Selma Lemes.