A aprovação da Lei 14.725/2023 representa um importante avanço na regulação da força de trabalho no Brasil, incorporando ao sistema de saúde brasileiro, de forma mais sólida e com maior segurança jurídica, um novo profissional que, se bem formado, muito contribuirá para a formulação, planejamento, execução, avaliação e controle de políticas públicas de saúde.
No campo da saúde pública, a regulação estatal deve garantir a saúde como direito de todos e dever do Estado (CF/1988, art. 196). Em síntese, a regulação do exercício profissional no campo da saúde deve ser realizada para que os profissionais de saúde, em sua atuação, sejam vetores do desenvolvimento social rumo aos objetivos nacionais listados pela Constituição.
A busca de uma definição para saúde pública não é nova e ainda persiste. Entre as múltiplas definições formuladas, a elaborada por Charles-Edward Winslow, publicada na revista Science em 1920, foi a mais celebrada e ainda hoje é amplamente utilizada:
“A saúde pública é a ciência e a arte de prevenir as doenças, de prolongar a vida e de promover a saúde e a integridade física através de esforços coordenados da comunidade para a preservação do meio ambiente, o controle das infecções que podem atingir a população, a educação do indivíduo sobre os princípios de higiene pessoal, a organização dos serviços médicos e de saúde para o diagnóstico precoce o tratamento preventivo de patologias, o desenvolvimento de dispositivos sociais que assegurem a cada um nível de vida adequado para a manutenção da saúde”.
O sanitarista, assim, é o profissional que deve dominar a ciência e arte da saúde pública, com conhecimentos, habilidades e atitudes voltadas a prevenir doenças, prolongar vidas e promover a saúde e a integridade física das pessoas e da coletividade. Sua atuação pode e deve ser capilarizada por todo o sistema de saúde, em todos os níveis de atenção e, principalmente, em funções de gestão e governança das instituições que oferecem cuidados de saúde à população.
Quem é o profissional sanitarista?
O artigo 3º da lei recém-aprovada estabelece seis possibilidades para que um cidadão possa se habilitar como profissional sanitarista, sendo elas as seguintes:
Os diplomados em curso de graduação reconhecido pelo Ministério da Educação e por ele classificado na área de Saúde Coletiva ou de Saúde Pública, ofertado por instituição de ensino superior nacional credenciada pelo Ministério da Educação;
Os diplomados em curso de mestrado ou doutorado classificado pelo Ministério da Educação na área de Saúde Coletiva ou de Saúde Pública, devidamente reconhecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes);
Os diplomados em curso de graduação na área de Saúde Coletiva ou de Saúde Pública por instituição de ensino superior estrangeira, com diploma revalidado por instituição de ensino superior brasileira;
Os portadores de certificado de conclusão de curso de pós-graduação de Residência Médica ou Residência Multiprofissional em Saúde na área de Saúde Coletiva ou de Saúde Pública, reconhecido pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) ou pela Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde (CNRMS);
Os portadores de certificado de conclusão de curso de especialização devidamente cadastrado no Ministério da Educação na área de Saúde Coletiva ou de Saúde Pública, ministrado por instituição de ensino superior cadastrada no Ministério da Educação, cujos formato, duração ou ênfase sejam reconhecidos por autoridade competente do Sistema Único de Saúde (SUS);
Aqueles que tenham formação de nível superior e comprovem o exercício de atividade profissional correlata no período mínimo de 5 (cinco) anos até a data de publicação da Lei.
Escopo de prática do profissional sanitarista
Como profissional detentor de um saber especializado, o sanitarista pode atuar no exercício de diferentes atribuições, conforme definido pelo artigo 4º da Lei 14.725/2023. Assim, a nova norma cuidou de definir expressamente alguns escopos de prática do sanitarista, destacando os seguintes:
analisar, monitorar e avaliar situações de saúde;
planejar, pesquisar, administrar, gerenciar, coordenar, auditar e supervisionar as atividades de saúde coletiva nas esferas pública, não governamental, filantrópica ou privada, observados os parâmetros legais e os regulamentos vigentes;
identificar, pesquisar, monitorar, registrar e proceder às notificações de risco sanitário, de forma a assegurar o controle de riscos e agravos à saúde da população, nos termos da legislação vigente;
atuar em ações de vigilância em saúde, inclusive no gerenciamento, supervisão e administração, nas instituições governamentais de administração pública direta e indireta, bem como em instituições privadas, não governamentais e filantrópicas;
elaborar, gerenciar, monitorar, acompanhar e participar de processos de atenção à saúde, de programas de atendimento biopsicossocial e de ações, inclusive intersetoriais, de prevenção, proteção e promoção da saúde, da educação, da comunicação e do desenvolvimento comunitário;
orientar, supervisionar, executar e desenvolver programas de formação nas áreas de sua competência;
executar serviços de análise, classificação, pesquisa, interpretação e produção de informações científicas e tecnológicas de interesse da saúde e atuar no desenvolvimento científico e tecnológico da saúde coletiva, levando em consideração o compromisso com a dignidade humana e a defesa do direito à saúde;
planejar, organizar, executar e avaliar atividades de educação em saúde dirigidas em articulação com a população em instituições governamentais de administração pública direta e indireta, bem como em instituições privadas e organizações não governamentais.
As competências profissionais do sanitarista não eliminam as competências profissionais análogas já atribuídas a outros profissionais de saúde atualmente regulamentados.
Registro e fiscalização do profissional sanitarista
A lei não detalhou alguns aspectos relevantes da nova profissão, deixando abertos aspectos importantes sobre como será feito o registro deste profissional pelo Estado brasileiro e também sobre qual será a instituição responsável por realizar a fiscalização do exercício profissional, por editar a regulação deontológica ou mesmo pelo detalhamento dos escopos de prática.
Com relação ao registro, o artigo 6º prevê apenas que o exercício da profissão de sanitarista requer prévio registro em órgão competente do SUS, o qual será feito mediante a apresentação de documentos comprobatórios do cumprimento dos requisitos previstos na lei. Está em aberto, portanto, a definição de qual órgão competente será este. Será o Ministério da Saúde? Será criado um órgão específico para isso no âmbito federal? Será criada uma nova autarquia corporativa regulatória?
O mesmo acontece com relação à fiscalização da profissão de sanitarista, que de acordo com o artigo 7º será realizada “na forma da regulamentação”. Fica assim também em aberto quem irá fiscalizar o exercício ético, técnico e profissional dos sanitaristas registrados.
Novas perspectivas
Várias perspectivas se abrem com o reconhecimento da profissão de sanitarista e a sua inserção, agora formal e com maior segurança jurídica, nos diversos serviços de saúde oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
De imediato, a lei já deixa mais confortável para a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios a abertura de concursos que prevejam expressamente a contratação de sanitaristas, algo que vinha sendo objeto de muitos questionamentos jurídicos ao longo dos últimos anos.
Além disso, a participação do sanitarista na gestão do SUS, como profissional habilitado, formalmente contratado e vinculado aos serviços de saúde, contribuirá de forma positiva para a melhoria da gestão do sistema de saúde brasileiro como um todo, a partir de uma perspectiva de saúde pública e de implementação no Brasil de um sistema público de saúde universal, igualitário, integral e participativo.
A regulamentação do profissional sanitarista no Brasil é um reconhecimento merecido a estes profissionais que tanto podem contribuir para a melhoria das políticas públicas e serviços de saúde, sendo certo que a sociedade brasileira ganhou mais uma profissão regulamentada de saúde relevante para a construção do SUS.