Quase cinco anos após a promulgação do novo Marco Legal do Saneamento Básico, o setor já vivencia um ambiente reformado pela dinâmica das delegações via concessões comuns e parcerias público-privadas (PPPs).
Nesse curto espaço de tempo, diversos estados, exitosos em promover a regionalização, experimentaram uma aceleração significativa de processos licitatórios e a celebração de contratos robustos para os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário que se aproximam do primeiro ciclo de revisão ordinária.
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Ao lado desses projetos já amadurecidos, há diversos outros ainda em fase (mais ou menos avançada) de modelagem e que precisarão ser muito bem estruturados para vencer o cada vez mais desafiador prazo de universalização dos serviços de saneamento imposto pela Lei 14.026/2020, abrindo espaço para um aprendizado institucional fundamental.
Um dos temas centrais e que ainda merece aprimoramento diz respeito à alocação contratual de riscos: tanto por imposição legal do artigo 22, §1º, da nova lei de licitações (Lei 14.133/2021)[1] quanto por decorrência da própria lógica econômica dos contratos de concessão e das PPPs, os contratos devem realizar uma alocação eficiente de riscos, segundo o critério de que cada risco deve ser atribuído à parte mais apta para gerenciá-lo, considerando sua capacidade de prevenir ou mitigar os impactos decorrentes desses eventos.[2]
A lógica que sustenta essa metodologia de alocação é clara: quanto mais alinhado estiver o risco com a capacidade de resposta da parte contratante, maior será a eficiência econômica do contrato. Essa eficiência alocativa permite que os investidores possam oferecer propostas mais atrativas (ao permitir que não sejam precificados e contingenciados na proposta os recursos necessários para lidar com esses riscos, caso ocorram) e que atendam, de maneira efetiva, aos requisitos de universalização dos serviços e ao interesse público.
Isso deve levar a uma sofisticação da alocação contratual de riscos para (muito) além da tradicional e binária divisão de que ao particular caberiam todos os riscos “ordinários” e ao poder público contratante caberiam os riscos “extraordinários” e ao abandono da ideia de que da menção na Lei 8.987/1995 de que concessões se dão “por conta e risco” do particular decorre que certos riscos devam ser integralmente atribuídos ao particular.
Caso emblemático é o risco de demanda, que é um dos principais riscos dos projetos no setor e tradicionalmente é tido como integralmente afeto à gestão privada. Um olhar mais cuidadoso, todavia, demonstra que a alocação desse risco merece tratamento mais apurado.
A demanda pelos serviços de saneamento básico depende de algumas condições necessárias e é verificada apenas quando essas condições são reunidas: (i) disponibilidade da rede, (ii) conexão dos usuários e (iii) efetivo consumo de cada economia ativa.
Considerando que a concessionária não possui poder de polícia para obrigar os usuários a se conectarem às redes disponibilizadas e considerando que o volume efetivamente consumido de água e esgotamento sanitário depende fundamentalmente do preço das tarifas definido em contrato ou pela agência reguladora vis-à-vis a capacidade de pagamento dos usuários, percebe-se que das três condições necessárias destacadas acima apenas o item (i) disponibilidade da rede está sob o gerenciamento da concessionária.
Diante dessas limitações, há uma evidente necessidade de revisão dos mecanismos contratuais que atualmente tendem a concentrar tais riscos na esfera do particular. A experiência acumulada em outros setores comprova que o compartilhamento de riscos por meio de dispositivos contratuais – como compartilhamento dos riscos de demanda em bandas – possibilita uma gestão mais equilibrada e sustentável dos projetos.
Por exemplo, nas mais recentes concessões federais e estaduais de rodovias foram incluídas cláusulas de compartilhamento em banda do risco de demanda, que limitam a exposição da concessionária a flutuações extremas e estabelecem parâmetros claros para reequilíbrios. O poder concedente, ao assumir uma parcela desses riscos, pode contribuir para a estabilidade e a viabilidade dos projetos, incentivando um ambiente de negócios mais competitivo e seguro, sem abrir mão do compromisso com a universalização tempestiva dos serviços essenciais.
É necessário, portanto, coragem para romper tabus, respaldada por esta curva de aprendizado intersetorial que em muito contribui para o avanço da infraestrutura no Brasil. Insistir na alocação integral de riscos que não se encontram inteiramente sob controle do particular penaliza o próprio interesse público, encarece o serviço e dificulta a universalização.
O desenho de contratos mais inteligentes, que compartilhem riscos de forma calibrada, balizados pelas melhores práticas da teoria regulatória e pela experiência de outros setores é condição basilar para consolidar o ciclo virtuoso de investimento e expansão dos serviços de saneamento no país.
[1] Art. 22. O edital poderá contemplar matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado, hipótese em que o cálculo do valor estimado da contratação poderá considerar taxa de risco compatível com o objeto da licitação e com os riscos atribuídos ao contratado, de acordo com metodologia predefinida pelo ente federativo.
- 1º A matriz de que trata o caputdeste artigo deverá promover a alocação eficiente dos riscos de cada contrato e estabelecer a responsabilidade que caiba a cada parte contratante, bem como os mecanismos que afastem a ocorrência do sinistro e mitiguem os seus efeitos, caso este ocorra durante a execução contratual.
[2] PINTO, Marcos Barbosa. Repartição de riscos nas parcerias público-privadas. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 13, n. 25, p. [155]-181, jun. 2006.