Ingressei na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em 2007, com senso de dever público e do potencial do setor para o desenvolvimento do país, inicialmente atuando na fiscalização dos serviços de eletricidade.
Durante dez anos de dedicação intensa às atividades de fiscalização, tive a honra de integrar a primeira dupla de mulheres especialistas fiscais da agência, rompendo barreiras culturais e implementando inovações importantes, como a fiscalização responsiva, sempre buscando a melhoria contínua dos processos, inovação regulatória e fortalecimento da transparência institucional.
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Mais recentemente, essa trajetória me levou à tecnologia da informação, onde venho aplicando minha experiência para fomentar a transformação digital da agência, observando como a tecnologia, especialmente a inteligência artificial, está moldando o futuro da fiscalização e da regulação.
A fiscalização tradicional, baseada em inspeções presenciais e análise manual de documentos, está sendo transformada pela IA em um modelo cada vez mais preditivo, responsivo e baseado em evidências robustas. O uso de algoritmos de aprendizado de máquina, visão computacional e análises preditivas permitem identificar padrões de comportamento, antecipar falhas operacionais e direcionar os esforços de maneira mais eficiente e assertiva, ampliando a capacidade de fiscalização com menos recursos e maior efetividade.
Estudos acadêmicos destacam o uso crescente de tecnologias avançadas na fiscalização regulatória, como inspeções automatizadas com drones equipados com IA, monitoramento remoto de ativos críticos, integração de dados meteorológicos para previsão de riscos e agentes inteligentes para priorização de ocorrências. Essas soluções tecnológicas aumentam a abrangência das inspeções, a precisão das análises e a eficiência das ações regulatórias, promovendo respostas mais rápidas e proativas.
A inspeção automatizada com uso de drones, por exemplo, permite a detecção de falhas em componentes críticos como cabos, isoladores e estruturas de suporte por meio de imagens visuais e termográficas analisadas por redes neurais profundas, conforme descrito por Santos et al. (2024) e Qi et al. (2025). Esse tipo de solução reduz significativamente os riscos operacionais para os fiscais, aumenta a cobertura geográfica das inspeções e permite diagnósticos mais precisos e em tempo hábil.
Já os sistemas de manutenção preditiva se beneficiam da análise de grandes volumes de dados históricos e em tempo real, como temperatura, vibração e tensão, para antecipar falhas e programar intervenções com maior eficiência. Modelos como os propostos por Ghasemkhani et al. (2024) e Wedagedara et al. (2024) demonstram ganhos significativos em precisão preditiva, contribuindo para a continuidade do serviço elétrico e a redução de custos operacionais.
A modelagem de riscos com integração de dados meteorológicos e não meteorológicos, como detalhado por Alhaddad et al. (2023); Nguyen et al. (2019); Ghasemkhani et al. (2024), permite a antecipação de eventos críticos como queimadas, tempestades e quedas de árvores sobre linhas de transmissão e distribuição, aumentando a capacidade de resposta das concessionárias e da agência reguladora.
O uso de agentes inteligentes e IA generativa na classificação automática de ocorrências regulatórias permite reduzir a carga analítica humana e acelerar a tomada de decisão baseada em evidências. Esses agentes podem aprender continuamente com históricos de inspeção e relatórios técnicos para gerar recomendações e padronizar a fiscalização.
A implementação dessas aplicações de IA apresenta alta viabilidade devido à crescente capacidade tecnológica em processamento e armazenamento de dados, além dos avanços em algoritmos de aprendizagem de máquina.
Fatores críticos incluem a qualidade dos dados históricos e a infraestrutura tecnológica robusta. Desafios como governança eficaz dos dados, capacitação profissional e planejamento para transparência e auditabilidade são fundamentais.
Sem dados de qualidade, a IA pode perpetuar vieses, gerar inconsistências e comprometer a legitimidade das ações de fiscalização. Por exemplo, se um modelo for treinado com relatórios históricos incompletos ou enviesados, pode levar a decisões inadequadas, como a negligência de áreas críticas ou o excesso de fiscalização em setores específicos, gerando resultados injustos e ineficazes.
A necessidade de transparência nas decisões automatizadas é fundamental para assegurar a confiança da sociedade nas ações das agências reguladoras, bem como para garantir a auditabilidade dos processos decisórios baseados em IA.
Ademais, a gestão dos riscos éticos associados ao uso de algoritmos é uma agenda que precisa ser enfrentada com responsabilidade, visão de longo prazo e sensibilidade social. Questões como explicabilidade dos resultados gerados por IA, auditoria de algoritmos, proteção contra discriminações automatizadas e segurança dos dados pessoais são temas centrais que devem ser incorporados às boas práticas regulatórias. Também se torna essencial fomentar o debate interinstitucional e internacional sobre padrões éticos para o uso da IA na administração pública.
Essa transformação impõe mudanças significativas na forma de atuar da regulação. As agências reguladoras precisarão revisar seus procedimentos operacionais, estabelecer novos padrões para a auditoria de sistemas inteligentes, investir de maneira consistente na capacitação técnica de suas equipes e adotar estratégias de gestão da inovação.
Nesse contexto, a diversidade de olhares é fundamental para assegurar que a evolução tecnológica aconteça de forma ética, responsável e inclusiva. A visão multidisciplinar, integrando conhecimentos jurídicos, técnicos, éticos e sociais, e a capacidade de antever impactos complexos da tecnologia sobre a sociedade serão diferenciais importantes para a regulação moderna e responsiva.
A experiência acumulada ao longo dos anos, tanto na fiscalização e regulação quanto na gestão de tecnologia da informação, reforça minha convicção de que a IA é uma aliada poderosa para potencializar o impacto regulatório. Entretanto, para que essa potencialidade se concretize de forma sustentável, é imprescindível que sua aplicação seja orientada por princípios sólidos de governança de dados, ética, transparência, responsabilidade social e compromisso inabalável com o interesse público.
A fiscalização do futuro será mais preditiva, mais inteligente, mais estratégica e mais integrada ao uso de tecnologias emergentes. A capacidade de antever riscos, agir preventivamente e fomentar comportamentos regulados mais adequados será ampliada de maneira exponencial. A regulação, por sua vez, precisará acompanhar essa evolução com maturidade institucional, coragem para inovar, investimento em infraestrutura digital e uma visão transformadora que não perca de vista a centralidade do serviço público e o compromisso com o cidadão.
Cabe a cada um de nós, profissionais dedicados à causa regulatória, liderar essa jornada de transformação com protagonismo, resiliência, responsabilidade e permanente busca por inovação consciente. O futuro da regulação é construído no presente, e a adoção crítica e estratégica da inteligência artificial é um dos caminhos mais promissores para alcançarmos uma atuação mais eficiente, transparente e justa para toda a sociedade.