Não é raro que projetos de infraestrutura sejam financiados por esquemas corruptos que envolvem empresas e famílias de políticos influentes. Seus participantes, muitas vezes, lavam dinheiro em outras jurisdições e expandem seus negócios de maneira ilícita. Propinas são pagas para assegurar contratos comerciais vantajosos, enquanto fundos públicos são desviados através de redes complexas que envolvem políticos, executivos de empresas estatais e privadas, além de empresas estrangeiras.
A situação é agravada pelo fato de que jornalistas, denunciantes e ativistas políticos anticorrupção enfrentam perseguições, ameaças e prisões, colocando suas vidas em risco. Além disso, não faltam exemplos de casos em que forças de segurança estão envolvidas em esquemas de corrupção, aceitando subornos substanciais para facilitar atividades ilícitas. Fluxos financeiros ilícitos provenientes de diversos mercados ilícitos e atividades de grupos de crime organizado são injetados na economia legal, comprometendo a integridade dos sistemas financeiros desses países.
Essa cadeia, que descreve uma trajetória para a corrupção transnacional, é um desafio comum enfrentado pelos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), composta por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Guiné Equatorial.
A lista de dilemas que emergem diante dos casos citados é extensa. A captura de instituições públicas e privadas para fins ilícitos e corruptos. A violação de direitos humanos, a redução da eficácia de políticas públicas, a erosão do espaço cívico, a redução do desenvolvimento sustentável e a diminuição da crença nos valores do Estado democrático de direito são outras das questões que levam à eclosão de crises e à instabilidade.
Vale mencionar, também, como impactos para a comunidade lusófona, a diminuição da distribuição equitativa de riqueza, o desvio de recursos, a distorção da economia em favor de cleptocratas, a degradação da integridade e da eficácia do sistema jurídico e a proliferação de uma cultura de impunidade.
Em maio, o Rio de Janeiro recebeu organizações da sociedade civil, acadêmicos, advogados, ativistas e jornalistas de países lusófonos e de outros países (como Madagascar e Venezuela) em torno de um objetivo em comum: avançar no enfrentamento à corrupção transnacional.
Tratou-se do II Encontro da RedeGOV – Rede pela Boa Governança e Desenvolvimento Sustentável na Lusofonia, uma iniciativa de mobilização cívica independente e informal, criada em 2017 com o objetivo de fortalecer o combate à corrupção na CPLP.
A união de vozes na RedeGOV serve como um poderoso lembrete de que apenas uma sociedade civil transnacional é capaz de enfrentar os males da corrupção transnacional. Tal cooperação viabiliza a troca de informações e treinamentos técnicos, além de suporte jurídico para enfrentar redes criminosas e a cleptocracia no nível global.
A RedeGOV fomenta o jornalismo investigativo cooperativo no universo lusófono, compartilhando melhores práticas, debatendo desafios atuais e explorando novas metodologias de investigação. A produção de conhecimento sobre os marcos legais anticorrupção e casos de corrupção transfronteiriça na CPLP é outra área com bastante potencial, podendo servir como a base para campanhas de advocacy.
Por fim, a cooperação via RedeGOV também tem o potencial de desenvolver esforços para litígios estratégicos, responsabilizando atores corruptos e seus facilitadores e promovendo a recuperação de ativos e a compensação das vítimas. Sem dúvida, em um mundo globalizado, onde escândalos de corrupção, fluxos ilícitos financeiros e complexas redes de cleptocratas e criminosos adquirem dinâmicas transnacionais, a RedeGOV emerge como uma iniciativa crucial para o fortalecimento de boa governança, integridade e transparência.
Engana-se quem pensa que a corrupção é um fenômeno inerente a uma ideologia política, ambiente de negócios ou cultura específica de um país. Trata-se de um fenômeno multifacetado e perverso que afeta a todos nós no nível global, se manifestando de forma diversa e exigindo seriedade e um engajamento cívico responsável por parte da sociedade civil. É imprescindível, portanto, recordar constantemente que a luta anticorrupção é, em sua essência, uma luta por direitos e pela construção de um mundo livre dos males que ela produz.
Em Angola, elites enriquecem explorando recursos naturais, familiares de ex-presidentes acumulam riqueza ilícita, empresas estatais são usadas para desvio de dinheiro público e a repressão política faz parte do cotidiano. Na Guiné-Bissau, instabilidade política e redes criminosas exacerbam a corrupção, com elites e forças de segurança frequentemente envolvidas. Em Moçambique, a conivência entre elites políticas e empresariais em um ambiente de subornos, autoritarismo e repressão é crônica.
Na Guiné Equatorial, a repressão política violenta erode o desenvolvimento e as esperanças de se estabelecer uma democracia no país. Mesmo com o espaço cívico constantemente sob ataque nesses países, há pessoas que lutam diariamente por uma sociedade livre da corrupção. Se essas pessoas não desistiram de seus países, mesmo diante de todos os desafios, retrocessos e riscos enfrentados, por que nós deveríamos desistir do nosso?