ANS e a crise das terapias

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A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) vem ampliando as coberturas assistenciais de terapias relacionadas aos pacientes portadores de transtornos globais do desenvolvimento, classificação em que se enquadra o Transtorno do Espectro Autista. Segundo dados do Center of Deseases Control and Prevention (CDC), órgão ligado ao governo dos Estados Unidos, existe hoje um caso de autismo a cada 110 pessoas. Dessa forma, estima-se que o Brasil, com seus 200 milhões de habitantes, possua cerca de 2 milhões de autistas.[i]

Em resumo, com as recentes RNs 541/22 e 539/22 foram afastadas Diretrizes de Utilização – mais conhecidas como DUTs, que limitavam o número de consultas e sessões, pondo fim a qualquer restrição ou balizamento relaciona às condições clínicas dos beneficiários.

Atualmente, a cobertura destes procedimentos depende apenas da solicitação do médico assistente, a quem cabe a prerrogativa de escolher o método ou técnica para o tratamento dos beneficiários diagnosticados com transtorno global do desenvolvimento. Sem qualquer restrição quanto ao volume de horas semanais ou ao número de sessões, cabe às operadoras garantir a cobertura de atendimentos com psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e fisioterapeutas para todas as doenças.

O que em uma primeira visão pode parecer um avanço, em verdade, embute um risco aos próprios beneficiários, que podem ficar sujeitos a indicações terapêuticas abusivas sem respaldo em estudo ou diretriz técnica, comprometendo a efetividade do tratamento e podendo causar, ainda, danos irreversíveis aos pacientes.

É importante contextualizar que as DUTs são condicionantes regulatórias, representativas das melhores práticas, pautadas pela medicina baseada em evidências, produzidas e editadas tendo por base protocolos de saúde definidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), e ainda, pela literatura médica mais atualizada.

Portanto, tem como finalidade precípua assegurar a defesa do próprio beneficiário, que somente se sujeitará ao procedimento por ela limitado se preenchidos os requisitos técnicos designados, evitando que o paciente se submeta a procedimentos médicos que possam ter repercussões gravosas.

Durante a Audiência Pública 36 promovida pela ANS para apurar contribuições de toda sociedade sobre o tema, a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) apresentou dados impactantes: após as alterações das regras, houve um aumento em 42% no volume de consultas e sessões relacionadas a esses atendimentos, percentual que leva em consideração um universo que representa 23,3% das operadoras atuantes no mercado.

A Federação apresentou ainda exemplos importantes de abusos na prescrição e excesso de horas de terapias, além de casos de esquemas fraudulentos com clínicas prestadoras de serviços especializados visando a obtenção de reembolso das sessões de terapia realizadas pelos beneficiários.

Dentre os casos, merece destaque um relatório médico que, entre outras terapias, indicou um total de 82 horas semanais para um beneficiário de 8 anos. Outro exemplo envolveu a prescrição de tratamento de 40 horas semanais para beneficiária com 35 dias de vida, portadora de Síndrome de Down, em Psicoterapia, Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional e Musicoterapia.

E esse vazio regulatório vem trazendo impactos perigosos para o sistema de saúde suplementar, que se vê, mesmo diante de casos de evidente abuso de prescrição, obrigando as operadoras a garantir cobertura sob pena de imputação de multas sancionatórias relevantes.

Esse contexto desafia as operadoras a buscarem mecanismos capazes de garantir e monitorar a qualidade das clínicas e prestadores de serviços e ter um controle cada vez mais efetivo sobre os planos terapêuticos prescritos pelos médicos assistentes.

Com a seriedade que o tema merece, precisamos descortinar que a cobertura incondicionada de terapias sem limite de horas ou número de sessões representa um risco travestido de garantia.

É demanda urgente de todos os atores desse ecossistema, sobretudo uma atuação mais ativa, realista e objetiva da agência reguladora garantindo o diálogo social e a discussão sobre a necessidade de criação de novas diretrizes de utilização que possam, acima de tudo, assegurar os direitos beneficiários, coibir abusos e garantir a sustentabilidade do setor.

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[i] https://biton.uspnet.usp.br/espaber/?materia=um-retrato-do-autismo-no-brasil