Anistia não é um tema novo para o Supremo Tribunal Federal (STF). Pode parecer, à primeira vista, que o assunto surgiu agora, com o julgamento sobre a existência ou não de repercussão geral no caso dos desaparecimentos forçados. Mas essa discussão está aberta no STF desde 2014, quando a Corte analisou a compatibilidade da Lei da Anistia com a Constituição de 1988.
O tribunal tem esperado o momento certo para retomar o debate. Seja pela conjuntura política, seja pela repercussão do filme Ainda Estou Aqui, estrelado por Fernanda Torres, o tempo parece estar chegando.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
Na decisão de 2010, o Supremo entendeu que os crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura militar estavam anistiados da mesma forma que os crimes praticados por militantes da esquerda. Mas e os desaparecimentos forçados e a ocultação de cadáveres, crimes permanentes? Como se encaixam nessa tese? Podem ser anistiados crimes que se prolongam no tempo? Essa é a pergunta que ainda pende de resposta.
Os embargos de declaração apresentados no julgamento de 2010 aguardam decisão até hoje. E já apontavam a omissão do Supremo em decidir sobre a abrangência ou não da Lei de Anistia para perdoar crimes como desaparecimentos forçados ou ocultação de cadáver.
“Com todo respeito, a omissão do v. acórdão, nesse ponto, reside na premissa de que entre as barbáries cometidas pelo regime de exceção há os crimes de desaparecimento forçado e de sequestro que, em regra, só admitem a contagem de prescrição a partir de sua consumação — em face de sua natureza permanente, conforme já assentado na Extradição 974 —, de modo que inexistindo data da morte não há incidência do fenômeno prescritivo”, defendeu o então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante, em agosto de 2010 no recurso à decisão do STF.
Tema, por sinal, que foi abordado detidamente apenas nos votos vencidos, como do hoje ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. “Recordo, ademais, que esta Suprema Corte decidiu, na Extradição 974, da qual sou redator para o acórdão, originalmente distribuída ao Min. Marco Aurélio, que o crime de sequestro, possivelmente seguido de homicídios, tem caráter permanente. Ou seja, o resultado delituoso protrai-se no tempo, enquanto a vítima estiver privada de sua liberdade ou os seus restos mortais não forem encontrados. Isso quer dizer que os respectivos prazos prescricionais somente começam a fluir a partir desses marcos temporais”, disse o ministro em seu voto.
Conheça a solução corporativa do JOTA que antecipa as principais movimentações trabalhistas no Judiciário, no Legislativo e no Executivo
A conjuntura recente, marcada por ameaças de golpe e pela crescente participação de militares na política, não é o que pressiona o Supremo a revisar esse julgamento. O que pesa é o arcabouço jurídico já existente, inclusive desde aquela época, como a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que aponta para a necessidade de adequação da interpretação da anistia a esses casos específicos.
“A Lei da Anistia é inconstitucional e inconvencional, pois não se coaduna com os princípios que norteiam o Estado Brasileiro e porque afronta as normas internacionais que o Brasil acolheu, no exercício de sua soberania”, diz Kenarik Boujikian, jurista e secretária nacional de Diálogos Sociais e Articulação de Políticas Públicas. “Não resta qualquer dúvida que a Lei da Anistia também não se aplica aos crimes permanentes”.
É importante lembrar que o julgamento da Lei da Anistia ocorreu durante o governo Dilma Rousseff, em um contexto de tensão entre o Executivo e os militares, especialmente com a instalação da Comissão da Verdade. Havia, nas Forças Armadas, o receio de revanchismo. A ação que levou à decisão do STF foi proposta e articulada num ambiente em que o Ministério da Defesa, sob o comando de Nelson Jobim, teve papel central.
As circunstâncias históricas mudaram. Isso pode levar o Supremo a dar uma resposta jurídica diferente agora (necessário, evidentemente, aguardar o julgamento). O Tribunal poderia ter respondido já em 2014, 2015 ou 2016 que a anistia não abarca crimes permanentes, como o desaparecimento forçado. Mas a agenda não era esta, o clima não era propício, os ministros pareciam satisfeitos com o julgamento e não queriam voltar a abrir as feridas históricas. Agora, a agenda do Supremo se abre diante de novos fatores políticos e sociais.
O ministro Flávio Dino percebeu essa janela de oportunidade e soube movimentar o debate dentro do tribunal. Mas o STF não revisará a Lei da Anistia nem fará uma guinada interpretativa. Apenas preencherá uma lacuna que ele próprio deixou aberta. Talvez tarde demais — mas sempre é tempo de corrigir erros e discutir a história do país.
“O acerto fundamental de propor o julgamento desse assunto não é somente sobre o passado. Mas também sobre o futuro. O que estaríamos discutindo são justamente os crimes que seguem sendo praticados desde então”, afirma Beto Vasconcelos, ex-secretário Nacional de Justiça. “O que estaríamos a debater é justamente a atitude de ainda criminosos que impedem o sepultamento definitivo das dores de familiares de vítimas da violência de agentes do Estado. O que estaríamos a evitar é a repetição de condutas criminosas graves como estas no futuro. A responsabilização é um ato imprescindível para se evitar que a história se repita”.