Anistia: casos Humberto Lucena e Jair Bolsonaro

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Nos últimos dias, o PL 2858/2022 tem movimentado os corredores do Congresso Nacional. De autoria do então deputado federal Major Vitor Hugo (PL-GO), o projeto de lei pretende conceder anistia a todos os que tenham participado de manifestações em qualquer lugar do território nacional do dia 30 de outubro de 2022 ao dia de entrada em vigor da lei (se aprovada), nas condições que especifica.

O substitutivo em discussão contém abertura suficiente para abarcar os atos do 8 de janeiro e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O assunto foi objeto de reportagem do JOTA.

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Considerando a inclusão desse PL na pauta da CCJ da Câmara dos Deputados desta terça-feira (29/10), convém tecer algumas considerações sobre a anistia e rememorar o caso do senador Humberto Lucena (PMDB-PB), um dos anistiados pela Lei 8.985/1995, que concedeu, na forma do inciso VIII do art. 48 da Constituição, anistia aos candidatos às eleições de 1994, processados ou condenados com fundamento na legislação eleitoral em vigor, nos casos que especifica.

À época, Lucena, presidente do Senado (e do Congresso Nacional), havia sido reeleito, mas sua candidatura fora cassada pelo TSE, por abuso de poder de autoridade e propaganda eleitoral dissimulada, em razão de ter solicitado à Gráfica do Senado Federal (hoje Secretaria de Editoração e Publicações do Senado Federal) a impressão de 130 mil calendários de parede com sua foto e os dizeres “Senador Humberto Lucena – 94”. Entre dezembro de 1993 e janeiro de 1994, esses calendários foram distribuídos ao eleitorado paraibano, por meio da franquia postal a que os parlamentares têm direito.

Em fevereiro de 1994, o Ministério Público Eleitoral ajuizou a ação contra Lucena, que foi julgada improcedente no TRE-PB. Interposto o recurso, o TSE reformou o julgado, cassando o registro de candidatura de Lucena, e declarando sua inelegibilidade por três anos (conforme a redação então vigente do art. 22, inciso XIV, da LC 64/1990).

O fundamento da decisão foi o de que a divulgação de sua imagem à custa de recursos públicos favoreceu indevidamente a sua candidatura, em detrimento dos demais participantes do pleito eleitoral. O decisum do Recurso 12.244 pode ser lido aqui.

O julgamento foi acompanhado de grande repercussão, tendo sido necessário o TSE dar parcial provimento aos embargos de declaração para, entre outros pontos, registrar que não se estava diante de interferência do Poder Judiciário no Poder Legislativo. Nesse ponto, fazia-se referência à disciplina interna corporis do funcionamento da Gráfica do Senado.

Em outubro de 1994, o senador participou das eleições sub judice, porque estava pendente o julgamento junto ao STF de RE que havia sido interposto contra a decisão do TSE. No pleito, obteve o número de votos suficientes para sua reeleição ao Senado. Ao final, em 30 de novembro de 1994, o RE 186.088 foi julgado improcedente, vislumbrando não existir questão constitucional, e pela impossibilidade de reexame de fatos e provas em RE, tendo-se mantido a decisão do TSE.

Em dezembro do mesmo ano, o Senado aprovou o PL 88/1994, de autoria do então senador Jacques Silva (PMDB-GO), idealizado pelo advogado Saulo Ramos, para conceder anistia aos candidatos às eleições de 1994 processados ou condenados com fundamento na legislação eleitoral em vigor. A proposição tramitou em regime de urgência e sua aprovação contou com 42 votos favoráveis. Os senadores contrários à proposta – Esperidião Amim (PPR-SC), Epitácio Cafeteira (PPR-MA) e Raimundo Lira (PFL-PB) – se retiraram do plenário, e somente o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) manifestou seu voto contrário ao projeto.

Remetido à Câmara dos Deputados, e tramitando como PL 4851/1994, o projeto foi aprovado em 18 de janeiro de 1995, com 253 votos favoráveis e 110 contrários. As atas taquigráficas permitem a leitura do contexto pela ótica dos parlamentares e que serviram como justificação ao projeto:

1) além do senador Humberto Lucena, outros 16 senadores e deputados estavam em situação semelhante (investigados, processados ou condenados pela suposta impressão de propaganda eleitoral na Gráfica do Senado);

2) esses congressistas teriam sido levados a erro de entendimento, na medida em que havia resposta a uma consulta chancelada pela própria Justiça Eleitoral quanto à licitude da impressão de materiais destinados à divulgação das atividades parlamentares;

3) em razão disso, para os parlamentares, o pronunciamento do TSE incorrera em erro judiciário (essa foi a expressão utilizada, embora o caso fosse mais o de uma cassação injusta);

4) a anistia é medida de caráter político cuja adoção é aconselhada para “acalmar os ânimos e pacificar” tanto o Legislativo, quanto o eleitorado;

e 5) o entendimento jurisprudencial do próprio STF à época no sentido de que a anistia seria imune à revisão judicial, sem possibilidade de escrutínio quanto aos motivos, a justiça ou a oportunidade da sua concessão, uma vez aprovada a lei.

Como houve emendas, o PL ainda retornou ao Senado, quando voltou a ser aprovado, agora por votação simbólica. Remetido à sanção presidencial, não houve quaisquer vetos, tendo-se convertido na Lei 8.985/1995.

Naquele então, juristas como Fábio Comparato, Celso Antônio Bandeira de Mello e Celso Bastos se posicionaram pela inconstitucionalidade da lei, por “desvio de poder” (pois o Legislativo teria votado a anistia em favor não do “interesse público” ou de toda a sociedade, mas de seus próprios membros); por contrariedade ao princípio republicano (notadamente aos seus subprincípios da igualdade e da impessoalidade); e por ofensa ao princípio da moralidade administrativa.

Incorporando esses argumentos contra a Lei 8.985/1995, a OAB ajuizou a ADI 1231, cuja petição inicial ainda avançou para caracterizar a lei como um indulto – na medida em que beneficiou um grupo de parlamentares identificáveis –, o que seria vedado ao Congresso Nacional, já que a competência para indultar é exclusiva do presidente da República.

Nada obstante a argumentação, o STF julgou improcedente a ADI 1231. Os principais fundamentos foram:

1) o Congresso Nacional detém a competência constitucional para conceder anistia, inclusive de seus membros, inexistindo na Constituição restrição quantos aos destinatários, de forma que o juízo de conveniência e oportunidade corre por conta do Legislativo e do Executivo (já que o presidente da República participa no momento da sanção ou veto do projeto de lei);

2) inexiste afronta aos princípios da moralidade e da impessoalidade só pelo fato de a anistia ter alcançado parlamentares, notadamente ante a previsão do art. 2º da Lei 8.985/1995, que estabeleceu, como condição para ser agraciado com a anistia, o ressarcimento aos cofres públicos pelos serviços individualmente prestados, ou seja, o ato questionado não teve a finalidade única de beneficiar congressistas, mas também a de garantir o ressarcimento ao Erário; e 3) não ocorrência de ‘desvio de poder’, dado que a anistia tem natureza política e o projeto de lei correspondente tramitou segundo as formalidades constitucionais e regimentais.

Do julgado, merece destaque o seguinte trecho do voto-vogal do ministro Gilmar Mendes:

“De toda forma, creio que o ponto que merece uma reflexão pormenorizada do Tribunal diz respeito à alegada violação ao princípio da moralidade. O requerente sustenta que ‘o ato normativo agride o senso comum de moralidade (…)’. Quero enfatizar que as ‘reações de repúdio por parte do senso comum, da moralidade pública e da consciência jurídica’ não podem servir, isoladamente, de parâmetro de controle em abstrato de constitucionalidade dos atos normativos emanados do legislador democrático. Alio-me, neste ponto, ao entendimento de Sepúlveda Pertence, já declarado em outras ocasiões neste Tribunal, de que a moralidade pura e simples não pode ser condição determinante a inconstitucionalidade de uma lei. Certamente, o Tribunal não pode se ater unicamente à fluidez do conceito de moralidade para anular atos do Poder Legislativo” (página 78).

Como se vê, houve uma clara preocupação em não permitir a utilização do princípio da moralidade como único parâmetro de controle das leis. Assim, a discussão foi encerrada, tendo-se mantido a anistia da Lei 8.985/1995.

A recordação desse episódio permite alguns paralelos com o atual PL 2858/2022, seja por alguns argumentos de antes que foram repetidos recentemente, seja pelo ambiente de consenso que vem se formando quanto à injustiça das condenações (a de Lucena em 1994 e a dos presos pelos atos de 8 de janeiro de 2023). Nos dois casos, para os seus proponentes, a anistia não constituiria um perdão, mas muito mais uma reparação.

Entretanto, as coincidências entre os dois casos param por aí, pois não há garantia de que o STF vá seguir seu precedente (da ADI 1231) e reconhecer a constitucionalidade de eventual lei de anistia (caso o PL 2858/2022 venha a ser aprovado). Mais de um ministro já deu mostras de sua posição no sentido de que “atuar contra a democracia é crime no caso brasileiro” e que “no Estado de Direito, responde-se pelo crime praticado”. Ou seja, na prática já foi antecipada a declaração de inconstitucionalidade da futura lei, quando ainda sequer se tem a redação final.

O STF até pode acabar decidindo diferente, mas não custa repisar que a anistia consubstancia ato político. A palavra anistia vem do grego amnistia, que significa esquecimento. Originalmente, sua finalidade se voltava para o perdão de crimes de natureza política, sob o fundamento de que para os crimes comuns existem o indulto e a graça. Nada obstante, a anistia evoluiu para abranger quaisquer atos punitivos de modo geral. Nesse sentido, por exemplo, a Rp 696 e a própria ADI 1231 que se acaba de mencionar. Assim, qualquer tipo de sanção é anistiável.

A lógica é a de que o poder de anistiar é inerente ao poder de punir (ou fixar a punição em abstrato). O único limite material dado ao instituto pela Constituição consta do art. 5º, inciso XLIII, apenas sendo insuscetíveis de anistia os crimes de tortura, tráfico, terrorismo e hediondos, não existindo proibição à anistia de infrações eleitorais que resultaram em inelegibilidade.

Como se vê, a questão não é jurídica, mas, sim, política.