Na política, nada é definitivo. Essa é uma máxima para qualquer analista ou pessoa que acompanha as relações entre o Executivo e os outros Poderes no Brasil. Em regimes republicanos, deve-se prezar pela aplicação dos princípios constitucionais nas disputas entre autoridades. Dessa máxima resulta a estabilidade democrática e, portanto, a normalidade política, ainda que eivada de imperfeições que redundam em eventuais distorções, as quais, porém, podem ser corrigidas apenas com mais e mais democracia.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sabe disso, mas possivelmente só tenha tido uma dimensão concreta do quão profundo é o abismo político que enfrentaria neste terceiro mandato quando começou a governar. Os seis meses iniciais de otimismo, permeados por uma melhora da economia e em uma possível normalização das relações com o Congresso, se mostraram apenas bons ventos passageiros, que progressivamente parecem se converter num furacão institucional capaz de reabrir a ferida aberta na democracia pela tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023.
Na liderança do Congresso até fevereiro do ano que vem, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), visando conseguir apoio para eleger um sucessor na presidência da Câmara, desenterrou um projeto de lei que busca proibir a delação premiada de presos e criminaliza a divulgação do conteúdo de depoimentos colhidos por autoridades visando à concessão de tal benefício.
Não se sabe se a versão final do projeto seria retroativa — isto é, se implicaria na não imputação de pessoas já condenadas devido a delações anteriores. De todo modo, o projeto pode dificultar a punição ao ato golpista, em particular no caso de seus mentores intelectuais.
Ironicamente, a versão inicial do projeto de lei é de 2016, quando o então deputado federal Wadih Damous (PT-RJ) buscava criar um mecanismo que pudesse isolar seus colegas de partido na mira da Operação Lava Jato.
Naquele ano, o projeto foi considerado ultrajante, mas em 2024, após terem se passado oito anos turbulentos, que incluíram um processo ambíguo de impeachment presidencial em 2016 e um governo destrutivo das instituições como foi o caso da administração de Jair Bolsonaro (PL), o bom senso e a razoabilidade se transformaram em apenas uma das múltiplas narrativas possíveis. O oportunismo parece reinar no Legislativo “como nunca antes na história desse país”.
Não há dúvidas de que o oportunismo sempre foi a marca do centrão, mas após Eduardo Cunha ter ocupado a presidência da Câmara, entre 2015 e 2016, a desfaçatez no debate público foi elevada a um nível de cinismo tal que lideranças de direita nem sequer se preocupam em dissimular que fazem da política um grande balcão de negócios. Nesse jogo, o presidente da República — quem quer que ocupe o cargo — torna-se refém das vontades dos “barões” do Legislativo.
É o caso de Lira, que ganhou desmedido poder durante o governo de Bolsonaro e vê em Lula um freio para suas ambições. O fanatismo que alimenta os bolsonaristas e encontra sua expressão mais clara nos criminosos de 8 de janeiro pode emparedar o governo atual, abrindo caminho para a anulação da condenação do ex-presidente, tornando-o novamente elegível.
Lira sabe o que tem nas mãos e sabe jogar. Enquanto a possibilidade de anistia aos criminosos, por um lado, lhe garantiria o apoio dos bolsonaristas em sua sucessão na presidência da Câmara, por outro, o simples fato de colocá-la em votação possibilita ao líder do centrão poder de negociar com o presidente por mais cadeiras ministeriais. De qualquer forma, Lula sai enfraquecido. A inclinação política de Lira, no entanto, leva a pensar que sua balança tenderá a pesar para os bolsonaristas.
Se as negociações de Lira são a manifestação superficial da submissão da política e da lei aos interesses de grupos oportunistas de um lado e autoritários de outro, a própria votação do projeto de anistia integra um plano mais profundo de corrosão da normalidade democrática.
Nesse sentido, vive-se no Brasil as tendências globais confirmadas pelo avanço da ultradireita nas eleições para o Parlamento Europeu no último fim de semana: a vontade de autocratas e fanáticos vem desmanchando a barreira entre a lei e o absurdo. Ordens constitucionais parecem perder seu fundamento em meio a uma cacofonia engendrada pela antipolítica da ultradireita.
A última vez que isso aconteceu, dessa forma, foi nos anos 1920 e 1930, com a ascensão de governos fascistas na Itália e na Alemanha. Embora o imaginário social sempre se incline a ver Hitler e a Alemanha nazista como modelos melhor acabados desse sistema, acredito que a Itália de Mussolini seja um exemplo mais contundente.
Mussolini não submeteu o Estado aos fascistas, antes fez o contrário: controlou o Estado e submeteu o Partido Fascista a ele. A burocracia pública, inclusive a polícia, manteve relativa liberdade. Não precisava, pois ela já estava de acordo com ele. Seu jeito “plástico” de governar permitiu com que se adaptasse às situações que lhe eram colocadas e seu governo se deu com o apoio das elites e com a tolerância à violência dos fascistas.
Tal como Mussolini, Bolsonaro tolerou a violência de seus apoiadores durante todo o seu governo e tal qual seu homólogo italiano, procurou não se envolver expressamente com os criminosos de 8 de janeiro. Com uma linguagem velada e claramente compreensível para quem quisesse entender — mas sutil o bastante para não o imputar diretamente aos crimes —, Bolsonaro os incentivou, defendendo-os como “patriotas”.
Agora, fazendo ouvidos moucos à gravidade do maior atentado à democracia desde o golpe de 1964, Lira busca o apoio dos parlamentares bolsonaristas com promessas de anistia, pavimentando o caminho para a normalização do fanatismo político. Pode controlar o tirano ao adular seu séquito e tolerar seus disparates, mas quando a política perde para o fanatismo não existe espaço para a liberdade. E sem ela, não há negociação.
O perdão a Bolsonaro e a toda a violência cometida por seus seguidores poderá ser entendido como uma carta branca para a ocupação das instituições e um convite a subverter os mecanismos da Constituição de 1988. Sem uma renovação de seus princípios, não há espaço para a política. Só autoritarismo e oportunismo. Isso porque uma anistia pavimentaria a anulação da inelegibilidade de Bolsonaro e seu retorno à Presidência da República. Não apenas os últimos anos do terceiro mandato de Lula seriam postos em xeque, mas toda a democracia brasileira.