A análise de marcas por autoridades regulatórias, que não o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), tem trazido alguns interessantes debates na atualidade. Poderia o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) determinar a retirada e/ou alteração de rótulo de produto sob a sua competência por conta de seu entendimento de que a marca do produto seria irregular, ainda que esta tenha sido devidamente concedida para o seu titular pelo INPI? É justamente o questionamento pautado nas últimas discussões.
A origem do debate seria o Ofício Circular 2/2023/CGI/DIPOA/DAS/MAPA (Ofício), que trata do uso de marcas qualitativas como “gourmet”, “royale”, “speciale”, “ouro”, “premium” em produtos de origem animal. O Ofício estabelece regras e critérios específicos para o uso dessas denominações, visando garantir que os produtos que as utilizam atendam a padrões de qualidade e características específicas correspondentes às expectativas dos consumidores associadas a essas marcas.
O Ofício determinaria, com fundamento no Decreto 9.013/17, que os agentes regulados poderiam utilizar tais expressões de marca em rótulos de produtos, desde que seguidos de texto informativo e comprováveis com evidências técnico-científicas que suportem o uso dessas palavras (mensuráveis e auditáveis).
Em outras palavras, o debate parte da premissa de que o MAPA estaria regulando um direito de propriedade intelectual de produtos sob sua competência, e reavaliando a possibilidade de uso de marcas já concedidas pelo INPI, sob o pretexto de defesa aos direitos do consumidor, que não poderia ser levado a confusão e/ou associação indevida pelo uso irregular de tais termos. Dessa forma, ausência de competência, violação ao direito adquirido, dentre outras ilegalidades e irregularidades abarcam a controvérsia.
Passemos a primeira questão: a autoridade competente para analisar pedidos e conceder marcas seria o INPI. A competência do INPI em avaliar marcas é determinada no art. 240 de sua lei (Lei 9.279/96 – LPI): “O INPI tem por finalidade principal executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica, bem como pronunciar-se quanto à conveniência de assinatura, ratificação e denúncia de convenções, tratados, convênios e acordos sobre propriedade industrial”.
Já, as competências do MAPA seriam determinadas pela Lei 9.649/98, em que não há qualquer competência expressa para análise de marcas ou proteção ao consumidor. Ou seja, em conclusão preliminar, INPI prevalece, sob a perspectiva de competência, frente ao MAPA.
Outra questão relevante é se o MAPA poderia, mesmo que implicitamente, reconsiderar o uso de marcas em produtos sob sua regulamentação visando proteger os consumidores. Da mesma forma, as discussões recentes indicam outra resposta negativa.
Comecemos pela base da propriedade industrial: a LPI define as condições e requisitos para a concessão de marcas, explicitamente proibindo o registro de sinais que “induzam a falsa indicação quanto à origem, procedência, natureza, qualidade ou utilidade do produto ou serviço a que a marca se destina” (art. 124, X).
Portanto, o cerne da norma é assegurar que as marcas sejam verídicas, correspondendo à realidade do que representam, sem enganar o consumidor. Nesse contexto, quando uma marca – em sua função principal de identificar a origem e distinguir produtos ou serviços – é analisada e concedida pela autoridade competente, já passou pelo escrutínio necessário, excluindo qualquer possibilidade prevista nos critérios de impossibilidade de registro do artigo 124 da LPI.
Por outro lado, o MAPA se fundamenta no Decreto 9.013/17, em particular no art. 446: os rótulos de produtos regulados não podem possuir marcas que transmitam informações falsas, incorretas, insuficientes ou que possam induzir o consumidor a equívoco, erro, confusão ou engano “em relação à verdadeira natureza, composição, rendimento, procedência, tipo, qualidade, quantidade, validade, características nutritivas ou forma de uso do produto”. Marcas que infringirem tais aspectos, sofreriam restrições ao seu uso.
Ora, possuímos duas normas, lei e decreto, que tratam do mesmo assunto, uma destinada de maneira geral (LPI) e uma específica a produtos de origem animal (Decreto 9.013/17). Como proceder com tal eventual conflito? A LPI seria lei ordinária, o Decreto seria ato expedido pelo Executivo (no caso, Presidente da República).
Podemos entender que a LPI é superior ao Decreto 9.013/17, por conta de sua natureza. O Decreto, então, não pode colidir com a LPI, nem sobrepor ou revogar a sua eficácia. Em outras palavras, confirmar que o Decreto em questão é válido, exclusivamente no aspecto marcário, poderia resultar em esvaziamento normativo; esvaziamento da própria competência do INPI, que resulta de lei superior a decreto. Em final, seria defender “inconstitucionalidade” de norma, gerando insegurança jurídica.
Por fim, podemos invocar na discussão os princípios e normas adicionais que sustentam a competência exclusiva do INPI para análise de marcas, destacando a legalidade e regularidade dessa atribuição em contraposição ao MAPA. Entre esses princípios, incluem-se o direito adquirido e dispositivos da Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/19), que exemplificam o respaldo legal necessário para essa divisão de competências.
O direito adquirido é tratado pela Constituição Federal (art. 5º, XXXVI) e pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/42) (LINDB) (art. 6º, § 2º). Temos que o direito adquirido seria o direito que foi garantido e pertence ao seu titular, não podendo mais ser suprimido, extinto ou modificado, mesmo em função de nova norma. É dizer, o direito adquirido traz segurança jurídica a um titular, que teve o seu direito reconhecido e garantido.
Pense-se na seguinte hipótese: marca concedida pelo INPI e questionada pelo MAPA, sendo que o último entenderia pela irregularidade. Ora, a concessão de marca pelo INPI se revestiria como um direito adquirido, com avaliação abarcando a perspectiva de direito do consumidor, e com possibilidades de exercício e consequências daí advindas. Vale e seria legal que o MAPA revisse tal direito adquirido, com base em norma irregular subjetiva?
A Lei da Liberdade Econômica merece também ser mencionada. Ela traz dois argumentos importantes e necessários: intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre as atividades econômicas (art. 2º, III) e abuso de poder regulatório ao restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda, exceto se previsto em lei (art. 4º, VIII). Há de se concordar que a atuação (ilegal) do MAPA frente a análises de marcas de produtos de origem animal parece também ferir a Lei da Liberdade Econômica.
Neste sentido, haveria intervenção considerável na atividade das empresas reguladas (que, repita-se, aprovaram as suas marcas previamente no INPI) e abuso do poder regulatório ao se restringir uso de marca, que é elemento de publicidade e propaganda e que não possui questionamentos do órgão competente (INPI) frente a legislação.
A teoria parece sustentável, mas, na prática, o MAPA questionou algumas marcas sob o contexto acima, sendo que uma das recentes discussões chegou no Poder Judiciário. No caso em questão, a empresa regulada sagrou-se vencedora, tendo reconhecido o seu direito de utilizar marcas “royale” e “speciale” frente ao irregular questionamento do MAPA. Um dos pontos reconhecidos em sentença foi a ausência de competência do MAPA para avaliar marcas com fundamento na defesa do consumidor.
Assim, é possível concluir que o MAPA não detém competência para avaliar marcas, especialmente no que tange à proteção do consumidor, posição reforçada pelo respaldo do Poder Judiciário. Questionamentos do MAPA fundamentados nessa área devem ser considerados ilegítimos e merecem tratamento adequado. A fala do mercado: deu presunto! E ainda dos bons…