Em recente artigo publicado na Folha de S.Paulo[1], Maurício Portugal Ribeiro tratou sobre a dissertação de mestrado de Danielle Pinho Soares Alcântara Crema[2], que analisou os pedidos de revisões extraordinárias dos contratos de concessão de aeroportos no Brasil apreciados pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) até agosto de 2024.
Como inferência a partir desse estudo, o autor propôs em seu artigo que a Anac cometeu equívoco regulatório em sua avaliação dos pedidos de reequilíbrio da pandemia de Covid-19. Esse equívoco teria contribuído para um alto descasamento de expectativas entre as partes dos contratos de concessão e resultado em insegurança jurídica, desconfiança dos investidores e maior dificuldade para financiar projetos.
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O objetivo do presente artigo é analisar a questão com base nas previsões contratuais sobre pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro e avaliar se realmente houve equívoco regulatório por parte da agência. Para tanto, é importante destacar as críticas centrais apresentadas.
Em sua coluna, o autor indica que a agência optou por fazer compensações anuais (em vez de calcular uma única compensação que estimasse o impacto por todo o prazo remanescente dos contratos) e condicionou as novas revisões (compensações anuais) a uma reavaliação do evento como ordinário ou extraordinário, ou seja, a agência faria anualmente um novo juízo sobre o enquadramento daquele risco como atribuído ou não ao poder concedente.
Além disso, critica a opção por compensações anuais, indicando que isso prejudicaria a financiabilidade do projeto, pois os financiadores não poderiam considerar esses valores na projeção de receitas, o que afetaria a capacidade das concessionárias de horar seus compromissos.
Naturalmente as críticas são válidas e merecem ser analisadas. Para tanto, é importante entender o que os contratos preveem sobre pedidos de reequilíbrio (dentro do mecanismo de revisão extraordinária), e a forma de executá-los.
Os contratos de concessão de aeroportos foram estruturados como um modelo não baseado em custos, definindo uma ampla alocação de riscos (matriz de riscos). O contrato é considerado em equilíbrio econômico-financeiro enquanto respeitada a alocação dos riscos (independentemente dos resultados reais das concessionárias). Logo, há uma baixa exposição a riscos regulatórios e uma alta exposição a riscos de mercado. Esse tipo de regulação é comumente chamado de regulação contratual (em contraposição aos modelos baseados em custo, normalmente chamados de regulação discricionária)[3].
Para os riscos alocados ao poder concedente, os contratos preveem a possibilidade de revisão extraordinária. Para tanto, é necessário que um risco alocado à parte pública ocorra e produza impacto relevante sobre a parte privada. No caso concreto da pandemia, é consenso que as duas condições ocorreram. Portanto, o reequilíbrio é devido e a agência deve implementá-lo adequadamente, compensando os efeitos produzidos por todo o prazo da concessão.
Para executar o reequilíbrio, a agência deve estimar os impactos por meio de um fluxo de caixa marginal. O contrato também prevê a necessidade de revisão periódica dos fluxos de caixa marginal, substituindo variáveis estimadas por variáveis realizadas.
Evidentemente trata-se de um reequilíbrio de enorme complexidade técnica. Todos devem concordar que não é trivial estimar o impacto que uma pandemia (com alto impacto em mobilidade social) produz sobre a demanda de diversos aeroportos por décadas. Esse ponto é fundamental para compreendermos as opções regulatórias feitas pela agência.
De fato, a forma típica de calcular os impactos de riscos alocados ao poder concedente é estimando seus efeitos durante toda a concessão. Essa estimativa é trazida a valor presente e o reequilíbrio é aprovado pela diretoria colegiada da Anac. Anualmente (ou no máximo a cada revisão ordinária – que acontece a cada 5 anos), essa estimativa é atualizada com valores realizados, para corrigir erros de estimativa que, naturalmente, são cometidos.
Posto isso, voltemos às críticas apresentadas. A primeira, sobre a reavaliação anual do juízo regulatório sobre a pandemia ser um risco atribuído ao poder concedente, não procede. Em nenhum momento a Anac decidiu reavaliar anualmente o enquadramento da pandemia como risco da parte pública. Até o final de cada concessão esse risco permanecerá reconhecido como do poder concedente.
A opção feita pela agência foi a de estimar anualmente o impacto considerando sua alta complexidade técnica. Com efeito, não é simples isolar os efeitos da pandemia de efeitos (dinâmicos) de outras variáveis cujo risco é atribuído às concessionárias. Vale lembrar que o risco de demanda é integralmente atribuído pelos contratos à parte privada. Logo, variações de demanda em função de razões ordinárias não podem ser reequilibradas (nem se a Anac quisesse fazê-lo). Como isolar os efeitos da pandemia era o grande desafio técnico.
Dessa forma, considerando as incertezas relativas às estimativas, a agência optou por calcular os impactos anualmente. Qualquer estimativa de longo prazo teria um nível de imprecisão tão alto que provavelmente geraria valores descolados da realidade. Basta se perguntar qual o impacto da pandemia de Covid-19 – cujos efeitos mais intensos ocorreram em 2020 e anos subsequentes – sobre a demanda de um aeroporto como o de Fortaleza em 2045, por exemplo.
Não obstante, é importante perceber que a escolha da Anac não afetaria a financiabilidade dos projetos. Mesmo que a opção tivesse sido por estimar um impacto único trazido a valor presente, essa estimativa seria revisada no máximo a cada 5 anos. Nesse momento o valor estimado provavelmente sofreria grande variação (para mais ou para menos), e a crítica apresentada seria a mesma.
Tecnicamente, é razoável assumir que os principais impactos de uma pandemia ocorrem nos anos mais próximos ao início da crise sanitária. Com o tempo, os efeitos vão sendo dissipados e a demanda retoma sua normalidade. O argumento de efeitos permanentes no tempo, que provocariam grande deslocamento da curva de demanda, é bastante controverso.
Por fim, vale destacar que em contratos de concessão baseados em custo, em um modelo de regulação discricionária, os riscos são compartilhados com a sociedade periodicamente (respeitados os mecanismos de incentivo a gestão eficiente). Nesse caso, a pandemia (e os demais riscos) teriam seus efeitos capturados em revisões ordinárias, promovendo compensações de tarifa e/ou outorga para reestabelecer o equilíbrio contratual. Sem dúvida há mais risco regulatório, mas o risco de descasamento de expectativas (e de downside de resultados) seria muito menor.
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Certamente o estudo citado pelo autor contribui muito para um melhor entendimento do modelo de concessão de aeroportos no Brasil, inclusive para a precificação de riscos. Mas é importante ter em mente que modelos de regulação contratual, sem amplas revisões ordinárias, são naturalmente mais arriscados[4]. Cria-se um forte incentivo para excesso de pedidos de reequilíbrio como válvula de escape em casos de downside nos projetos. Logo, há forte viés. E o estudo sobre o histórico de reequilíbrios também é bastante útil para essa reflexão[5].
Uma simples comparação dos valores dos pedidos de reequilíbrio de longo prazo entre concessionárias evidencia esse ponto. Por exemplo, olhando dados públicos agregados[6] (valores históricos), observa-se que o pedido de Guarulhos, divido pelo número de anos remanescentes da concessão e comparado à receita de 2019 da concessionária (pré-pandemia), foi de 23%. O mesmo cálculo para o Galeão é de 44%, enquanto para Confins corresponde a 11%. Fica nítida a variabilidade de estimativas (das próprias concessionárias) e a provável existência de vieses nos pedidos de reequilíbrio.
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Esse artigo constitui manifestação de caráter pessoal do autor e não reflete, necessariamente, o posicionamento oficial das instituições relacionadas.
[1] ANAC e reequilíbrios: o descasamento e a quebra de expectativas. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mauricio-portugal-ribeiro/2025/10/anac-e-reequilibrios-o-descasamento-e-a-quebra-de-expectativas.shtml.
[2] As revisões extraordinárias dos contratos de concessão de infraestrutura aeroportuária no Brasil. Disponível em https://repositorio.idp.edu.br//handle/123456789/5331.
[3] Regulação econômica de infraestruturas: como escolher o modelo mais adequado? Disponível em https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/2572/1/RB%2041%20Regulacao%20economica%20de%20infraestruturas_P.pdf.
[4] A modelagem inicial proposta pela Anac (por ocasião da concessão do Aeroporto de São Gonçalo do Amarante em 2011) permitia ampla revisão ordinária periódica (modelo cost-based). Nas discussões públicas com as partes interessadas houve forte preferência do setor privado por um modelo com menor exposição a riscos regulatórios.
[5] O artigo Para além da ideologia: a agenda apartidária da infraestrutura brasileira traz interessante reflexão sobre o assunto. Disponível em https://agenciainfra.com/blog/para-alem-da-ideologia-a-agenda-apartidaria-da-infraestrutura-brasileira/.
[6] Disponível em https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/concessoes/revisao-extraordinaria-dos-contratos-de-concessao.