Destinados a garantir – ou ao menos atenuar uma mudança abrupta – o padrão de vida experimentado por um dos cônjuges após o rompimento da relação, os alimentos denominados “compensatórios” são conceituados como uma “uma prestação periódica em dinheiro, efetuada por um cônjuge em favor do outro na ocasião da separação ou do divórcio vincular”.[1]
Diferentemente do que ocorre com os alimentos regidos pelos artigos 1.694 e seguintes do Código Civil, os quais possuem como objetivo suprir as necessidades de subsistência do credor, os alimentos compensatórios preocupam-se com uma finalidade distinta: a consumação de uma disparidade social entre os cônjuges após o fim do relacionamento[2] (v.g., esposa que se dedicou a vida toda ao cuidado dos filhos, abdicando de inserir-se no mercado formal de trabalho e que, após a separação, possui vertiginosa degradação no padrão de vida outrora experimentado).
Nas palavras de Maria Berenice Dias: “não têm por finalidade suprir as necessidades de subsistência do credor, mas corrigir ou atenuar grave desequilíbrio econômico-financeiro ou abrupta alteração do padrão de vida do cônjuge desprovido de bens e de meação”.[3]
Em razão desta finalidade específica, a obrigação alimentar nestes casos é – ao menos em regra – temporária, devendo perdurar desde a dissolução do vínculo conjugal, passando pela reinserção progressiva do cônjuge no mercado de trabalho, até o momento em que sua atividade laboral lhe possibilite atingir “pelas próprias forças, status social similar ao do período do relacionamento”.[4]
Não pretende este autor desconstruir as bases doutrinárias e jurisprudenciais já alicerçadas a respeito do assunto ao longo dos últimos anos, mas aprimorá-las, acrescentando um componente de suma importância, que, por vezes, passa ao largo dos intérpretes do direito: a perspectiva de gênero.
Embora o Superior Tribunal de Justiça reconheça o caráter temporário dos alimentos compensatórios, o faz concordando também com a existência de uma conditio sine qua non para término da prestação alimentícia: o atingimento, pelo(a) credor(a), de situação apta a levá-lo(a) ao padrão de vida anteriormente experimentado. Contudo, o regramento dos alimentos compensatórios não pode se descurar da realidade brasileira.
Existem inúmeras situações dentre as famílias Brasil afora nas quais um dos cônjuges – geralmente a mulher – dedica-se por anos, décadas e até mesmo a vida inteira aos cuidados dos filhos, aos afazeres domésticos e exclusivamente à relação conjugal, enquanto o outro desempenha o papel de provedor econômico da casa e ascendendo posições no mercado de trabalho. Por vezes, a depender do tempo em que o modus familiae se perpetuou, a reinserção da mulher no mercado de trabalho será extremamente difícil. (v.g., esposa com oitenta anos que, por décadas, cuidou dos filhos e dedicou-se exclusivamente à relação conjugal).
Portanto, interpretar o tema a partir de uma perspectiva de gênero significa levar em consideração, no momento da fixação dos alimentos compensatórios, todas as circunstâncias e escolhas de vida realizadas pelo casal durante o planejamento familiar ao longo dos anos, e cotejá-las com o atual momento de cada um dos cônjuges (v.g., posição no mercado de trabalho, idade, estado de saúde etc.), observando-se, ainda, o trinômio idealizado pela doutrina[5] e pelo Superior Tribunal de Justiça[6] como ponto de partida em matéria de prestação alimentar: necessidade, possibilidade e proporcionalidade.
O texto desta semana na coluna Direito dos Grupos Vulneráveis propõe uma releitura do tema. O ponto de partida é a remoção das evidentes assimetrias de gênero que permeiam a atual hermenêutica a respeito do assunto, mediante a propositura de uma nova métrica pelo órgão julgador no momento da fixação dos alimentos compensatórios: aquela que valoriza, em pé de igualdade e dignidade, as escolhas e atividades desempenhadas por cada um dos cônjuges no seio familiar.
1) Trabalho de cuidado dos filhos exercido pela genitora
A valoração do trabalho de cuidado dos filhos e o tempo investido pela mãe na rotina das crianças/adolescentes, enquanto o genitor exerce determinada atividade laboral fora do lar, é fator que não pode, sob hipótese alguma, ser desconsiderado no momento da fixação dos alimentos compensatórios. E variados são os argumentos que alicerçam a posição deste autor.
Se, por muito tempo, o exercício do cuidado dos filhos pela genitora foi simplesmente desconsiderado ou tido como algo de diminuta importância – talvez em virtude da ausência de remuneração. Atualmente, parece existir uma maior consciência coletiva a respeito do assunto; e não apenas acerca da importância da função desempenhada por inúmeras mulheres em todo território nacional, mas – e principalmente – como o trabalho de cuidado dos filhos (v.g., deslocamento escolar, preparo de alimentos, ajuda com deveres escolares, organização do lar etc.) importa em uma verdadeira sobrecarga na rotina da mulher mãe. Isso lhe retira, por consequência, inúmeras oportunidades de trabalho extramuros, além da privação de tempo para o desempenho de atividades de aperfeiçoamento cultural, autocuidado (v.g., saúde estética, mental etc.) e participação na vida em sociedade (v.g., eventos festivos, passeios etc.).
Logo, deixar de inserir o trabalho de cuidado dos filhos nas métricas a serem aplicadas pelo juízo no momento da fixação dos alimentos compensatórios, significa ignorar todo este complexo emaranhado de consequências que se consumam de forma direta e indireta na vida das mulheres que, de forma genuína, dedicam-se de corpo e alma ao cuidado dos seus filhos.
Felizmente, os tribunais de Justiça dos estados parecem iniciar, permeados por uma interpretação sob as lentes de gênero, um movimento no sentido de reconhecer e valorizar o trabalho de cuidado dos filhos exercido pela genitora no momento da fixação dos alimentos compensatórios, sendo possível encontrar decisões pioneiras nos estados do Paraná,[7] Goiás[8] e São Paulo.[9]
2) Dedicação exclusiva da mulher aos afazeres domésticos
Circunstância que costuma aparecer com alguma frequência em processos de família, e que, na opinião deste autor, deve urgentemente ser incorporada dentre os parâmetros a serem utilizados pelo órgão julgados no momento da fixação dos alimentos compensatórios, diz respeito à dedicação exclusiva da mulher aos afazeres e trabalhos domésticos.
Mesmo diante da existência de uma mudança cultural, na qual parcela significativa das mulheres encontram-se inseridas no mercado de trabalho, ainda é possível constatar no dia a dia do sistema de justiça, a existência de famílias nas quais os cônjuges acordam que, um deles, geralmente a mulher, permanecerá em casa dedicando-se integralmente aos afazeres e trabalhos domésticos. Nestas hipóteses, havendo a dissolução do vínculo conjugal, a referida distribuição de tarefas outrora pactuada entre os consortes deve figurar como uma das métricas na mensuração do quantum alimentar a ser pago a título de alimentos compensatórios.
Assim como outros trabalhos, que envidam esforços e dispendem de tempo, a dedicação aos trabalhos domésticos e afazeres da casa é uma ocupação digna. Deste modo, inexiste razão jurídica para desconsiderar a dedicação integral da mulher aos trabalhos e afazeres domésticos quando da análise do pedido de prestação alimentícia compensatória. Pelo contrário, deve o julgador, no afã de concretizar uma interpretação sob as lentes de gênero, obrigatoriamente mensurá-la no momento de fixação dos alimentos entre os ex-cônjuges.
De forma pioneira, e com fulcro Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero editado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul adotou a posição defendida por este autor, considerando a dedicação exclusiva da mulher aos afazeres domésticos como um dos parâmetros a serem levados em consideração no momento da fixação dos alimentos compensatórios.[10]
3) Impossibilidade de reinserção da mulher no mercado de trabalho e transmutação da natureza dos alimentos compensatórios
Nas hipóteses de tentativa de reinserção tardia no mercado de trabalho – de forma que impossibilite o desempenho de qualquer atividade laborativa –, interpretar o tema a partir de uma perspectiva de gênero significa reconhecer a transmutação da natureza da obrigação alimentar: de temporária para permanente. Diversos são os exemplos do cotidiano que nos permitem ilustrar este ponto ao leitor.
Exemplo 01: Suponhamos que determinada mulher tenha se casado aos 18 (dezoito) anos, e, após vivenciar uma relação ao longo de seis décadas, na qual ambos pactuaram em comum acordo que ela se dedicaria de forma exclusiva ao trabalho de cuidado dos filhos e aos afazeres domésticos, seu cônjuge decida se divorciar. Atualmente com 78 (setenta e oito) anos e afastada do mercado de trabalho por mais de sessenta anos, parece razoável conceber que, neste caso, os alimentos compensatórios devem ser prestados de forma permanente pelo ex-marido.
Exemplo 02: Um casal viveu em união estável por trinta anos. Durante esse período, em comum acordo, decidiram que a mulher dedicar-se-ia exclusivamente à relação conjugal e ao cuidado dos filhos. Após o atingimento da maioridade de todos os filhos, o homem decide se divorciar, porém, neste ínterim, a esposa, com sessenta anos de idade, acaba acometida por doença que a incapacita para realizar atividades laborais. A despeito de eventual benefício a ser pago pela previdência social, a esposa fará – na opinião deste autor – jus aos alimentos compensatórios de forma permanente, com o objetivo de resguardar o padrão de vida outrora vivenciado. Situação similar foi objeto de análise pelo TJRJ em pedido de majoração de alimentos julgado procedente: “[a]utora que sempre se dedicou ao lar, à família e não desempenhou trabalho remunerado por todo o período que durou o relacionamento, ou seja, por pelo menos 27 (vinte e sete) anos, encontrando-se atualmente com problemas de saúde e com dificuldade de reinserção no mercado de trabalho, em evidente situação de vulnerabilidade”.[11]
Ao realizarem planos de vida em conjunto, os cônjuges devem estar preparados para dar suporte um ao outro, ainda que dissolvido o vínculo conjugal, em situações excepcionais e supervenientes ao momento das escolhas realizadas. Nesse sentido, este autor defende que, analisando-se cada situação em concreto, e mediante um cotejo das atividades exercidas por cada um dos então cônjuges durante o casamento ou união estável, os alimentos compensatórios podem, excepcionalmente, serem prestados de forma permanente. E assim já decidiram os Tribunais de Justiça do Estado do Rio de Janeiro[12] e de Minas Gerais.[13]
Em todos os casos encontrados na jurisprudência acerca dos três parâmetros mencionados neste texto, foi a mulher quem necessitou dos alimentos compensatórios, fator que sinaliza a necessidade do tema ser interpretado a partir de uma perspectiva de gênero.
Até a próxima.
[1] MADALENO, Rolf. Direito de Família. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 1.161.
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.290.313/AL. Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 12/11/2013.
[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 16. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023. p. 849.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.205.408/RJ. Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 21/06/2011.
[5] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 16. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023. p. 857.
[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.624.050/MG. Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 19/06/2018.
[7] PARANÁ. Tribunal de Justiça do Paraná. Agravo de Instrumento nº 0055203-23.2023.8.16.0000. 12ª Câmara Cível, Rel. Des. Eduardo Augusto Salomão Cambi, j. 13/11/2023 e Agravo de Instrumento nº 0005377-28.2023.8.16.0000, 12ª Câmara Cível, Rel. Juíza Substituta Sandra Bauermann, j. 15/12/2023.
[8] GOIÁS. Tribunal de Justiça de Goiás. Agravo de Instrumento nº 5118965-13.2023.8.09.0164. Rel. Des. Gilberto Marques Filho, 3ª Câmara Cível, j. 15/05/2023.
[9] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível nº 1002401-70.2019.8.26.0201. Rel. Des. Miguel Brandi, j. 30/05/2023.
[10] MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Agravo de Instrumento nº 1420812-68.2023.8.12.0000. 5ª Câmara Cível, Rel. Desa. Jaceguara Dantas da Silva, j. 18/12/2023.
[11] RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 0002422-87.2021.8.19.0007. Rel. Des. Cezar Augusto Rodrigues Costa, Oitava Câmara de Direito Privado, j. 27/06/2023.
[12] RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 0005438-46.2021.8.19.0202. Rel. Desa. Cristina Tereza Gaulia, Quara Câmara de Direito Privado, j. 05/12/2023.
[13] MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível nº 1.0000.22.141021-0/002. Rel. Des. Francisco Ricardo Sales Costa, Câmara Justiça 4.0, j. 15/12/2023.