A procuradora-geral federal Adriana Venturini iniciou em sua posição como membro da Corte Permanente de Arbitragem (CPA), em Haia, na Holanda, no final de setembro, ao lado do advogado Renato Beneduzi.
Eles ocuparam as vagas que já foram de Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores, e Eduardo Grebler, professor da PUC-MG e advogado. Diante da tarefa ambiciosa da Corte, de mediar conflitos entre Estados e entidades privadas de seus 122 países membros, Venturini defende, em conversa com o JOTA, que o Brasil pode aumentar a sua participação com a indicação de de um membro da Advocacia-Geral da União (AGU), a partir da experiência acumulada pelo órgão com questões domésticas.
“Enquanto muitos países dependem de escritórios externos, a defesa no Brasil é realizada por servidores de carreira, garantindo uma expertise contínua e qualificada”, diz. “Estou convencida de que essa experiência acumulada justifica plenamente a indicação de um membro da AGU para um cargo tão relevante na CPA”.
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Leia a entrevista completa
Sabemos que a Corte Permanente de Arbitragem (CPA) foi criada em 1899, na Primeira Conferência de Paz da Haia, e possui um histórico de mais de cem anos de serviços relevantes. Qual é o perfil dos litígios atualmente submetidos à Corte?
Atualmente, o perfil dos litígios submetidos à CPA sofreu uma significativa evolução. Inicialmente focada em casos envolvendo apenas Estados, a Corte agora lida predominantemente com conflitos entre investidores e Estados, com mais de 70% dos casos nessa categoria.
Essas disputas podem ser fundamentadas tanto no direito internacional, especialmente nas arbitragens de investimento com base em tratados internacionais, quanto no direito interno de um dos países envolvidos, como nas arbitragens comerciais.
Aqui é fundamental distinguir a nossa atuação nos diferentes tipos de arbitragem. Desde a década de 1990, o Brasil adotou uma postura crítica, mas construtiva, optando por não seguir o modelo de arbitragem de investimento para conflitos com investidores estrangeiros, privilegiando a arbitragem comercial em contratos específicos. Essa escolha, embora tenha proporcionado maior proteção ao Estado, também resultou na diminuição do protagonismo brasileiro nesse tema.
Em 2023, uma análise dos casos em tramitação na CPA revela uma ampla diversidade de temas, que incluem seguros, eletricidade, telecomunicações e agricultura. Além disso, a Corte opera em múltiplos idiomas, como árabe, chinês, inglês, francês, coreano, português, russo e espanhol.
Nesse contexto, além de abordar conflitos relacionados à Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar ou à exploração pesqueira, a CPA demonstra sua capacidade de adaptação e relevância no cenário jurídico internacional contemporâneo.
E quais são os desafios atuais?
Desde sua criação em 1899, a CPA tem buscado cumprir sua vocação de prevenir conflitos e atualmente tem focado em uma distribuição territorial estratégica para estar mais próxima das partes envolvidas e oferecer soluções mais acessíveis e ágeis para disputas. Nesse contexto, a Corte já estabeleceu sedes em locais como Cingapura, Ilhas Maurício, Argentina, Vietnã e Áustria, visando facilitar a conexão com os contextos locais onde os conflitos emergem.
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Justamente buscando implementar uma pulverização geográfica que lhe permita mais fácil conexão com os contextos locais onde os conflitos ocorrem, é de se ressaltar a assinatura, em 25 de agosto de 2017, de um acordo de sede entre o Brasil e a CPA, que possibilitará a instalação da Corte em território nacional. Atualmente, esse acordo aguarda aprovação pelo Senado, por meio do PDL 386/22, que já está pronto para votação na Comissão de Relações Exteriores, com um parecer favorável do Senador Humberto Costa.
Assim, ao lado da maior presença global, é também de se considerar o desafio à CPA para, considerando-se seu caráter transnacional, enfrentar questões que possam ter repercussão mundial. Pense-se, por exemplo, no aquecimento de nosso planeta e nas suas mais diversas causas e – danosos – efeitos.
Em tal passo, a CPA, por sempre lidar com um Estado como uma das partes, pode, dentro de seu propósito permanente de buscar a paz, incidir com alguma amplitude sobre questões ambientais que, ao fim e ao cabo, relacionam-se estreitamente com a não eclosão ou encerramento de conflitos.
Veja-se que na atualidade, é digna de nota a criação de regras específicas para conflitos que envolvam Meio Ambiente ou Uso de Recursos Naturais. A CPA também mantém uma lista de árbitros, mediadores e peritos muitos dos quais com experiência nessas áreas, embora essa lista não seja vinculante para as partes.
Para ilustrar a relevância prática da CPA nesse campo, é importante mencionar que a Corte é frequentemente incluída em contratos, protocolos e convenções internacionais de natureza ambiental, como os contratos-padrão da indústria de descarbonização, o antigo Protocolo de Kyoto e o atual Green Climate Fund, o maior fundo dedicado a questões climáticas, criado durante a COP 16 e reforçado pelo Acordo de Paris.
O Brasil já foi representado por grandes figuras públicas na Corte, a começar pela participação de Ruy Barbosa no processo de criação da CPA, na Segunda Conferência de Paz da Haia, em 1907. Qual o significado da indicação de um membro da Advocacia-Geral da União? A experiência da AGU no campo da arbitragem foi decisiva?
A história do Brasil na Corte Permanente de Arbitragem (CPA) é marcada por grandes figuras, como Ruy Barbosa, que participou da criação da Corte na Segunda Conferência de Paz da Haia, em 1907. A indicação de um membro da Advocacia-Geral da União (AGU) para a CPA representa um passo significativo para fortalecer a presença do Brasil em um campo que tem ganhado crescente relevância no cenário global.
A AGU já demonstrou sua capacidade de lidar com litígios complexos, obtendo um desempenho positivo nos casos em que atua. Devido à sua vasta dimensão territorial e diversidade de interesses, o Brasil enfrenta complexidades que exigem uma abordagem cuidadosa em litígios que possam surgir.
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Assim a defesa pública deve ir além uma simples proteção do patrimônio público em processos judiciais, mas deve refletir uma atuação estratégica e eficaz nas disputas comerciais, para garantir segurança jurídica e fortalecer a confiança do investidor estrangeiro.
Em suma, é essencial que o Governo brasileiro amplie sua presença em um tema cada vez mais discutido no Sul Global.
Diversos fatores tornaram a Administração federal um ator relevante na arbitragem nacional. Considerando o valor das disputas, muitas delas são bilionárias. Desde 2018, houve um aumento expressivo no número de casos, especialmente nas agências reguladoras, que consolidaram o uso da arbitragem pelo poder público. A sensibilidade dos interesses discutidos é notável, já que essas disputas frequentemente envolvem ativos de grande relevância coletiva, como aeroportos, rodovias e linhas de transmissão de energia elétrica. Além disso, recentemente iniciamos um procedimento envolvendo o ICMbio, na concessão do Parque Aparados da Serra.
O balanço dessa experiência é muito positivo; enxergamos a arbitragem como um vetor de segurança jurídica, pois, além de aliviar o Poder Judiciário, permite a resolução mais rápida de conflitos, sempre buscando prestigiar o cumprimento dos contratos.
Pretendo levar essa percepção positiva para a CPA, compartilhando o conhecimento e a experiência acumulados pela Advocacia-Geral da União (AGU) no tema. A contribuição de advogados públicos é evidente, uma vez que procuradores estaduais e municipais frequentemente atuam como árbitros em diversos casos federais, muitas vezes indicados pelas próprias partes privadas. Assim, litígios que envolvem interesses públicos e discutem questões complexas, características das situações submetidas à CPA, podem se beneficiar enormemente da atuação de uma advogada pública de carreira.
Concretamente, apenas no último ano, podemos observar que, em relação às agências reguladoras, apenas 1 dos 7 casos finalizados foi desfavorável ao poder público. Essa taxa de sucesso reflete a rápida profissionalização da atuação da AGU, que é reconhecida como um exemplo de sucesso a nível mundial. Enquanto muitos países dependem de escritórios externos, a defesa no Brasil é realizada por servidores de carreira, garantindo uma expertise contínua e qualificada. Estou convencida de que essa experiência acumulada justifica plenamente a indicação de um membro da AGU para um cargo tão relevante na CPA.
Por fim, ao enfrentar as complexidades das questões internas do Brasil, como as que envolvem recursos naturais, direitos territoriais e políticas públicas, estamos não apenas nos preparando para desafios que podem surgir na CPA, mas também fortalecendo a posição do Brasil como um ator relevante no cenário de arbitragem internacional.
A partir da década de 1930 o escopo da Corte se ampliou, de modo a alcançar conflitos entre Estados e particulares. Considerando o processo de globalização e integração dos mercados, tal atribuição certamente ganhou relevância nos últimos anos. A Corte tem conseguido bons resultados no sentido de oferecer um caminho célere e seguro para resolver tais disputas?
Nos últimos anos, a CPA tem se mostrado eficaz em oferecer um caminho célere e seguro para a resolução de disputas, adaptando-se às necessidades das partes envolvidas.
Como mencionado anteriormente, a CPA tem ampliado sua presença entre os países membros, apresentando soluções personalizadas para os conflitos. Ao oferecer alternativas às cortes domésticas, a Corte pode lidar com litígios por meio de diversos mecanismos, como mediação, conciliação e arbitragem, além de comissões de inquérito. Essa flexibilidade é crucial em um ambiente global em rápida mudança.
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Se as partes buscam celeridade na resolução de suas controvérsias, a CPA pode adotar formatos que favoreçam esse objetivo, promovendo um processo mais ágil. Por outro lado, se o que se procura é uma solução que ofereça a máxima segurança jurídica, a Corte também é capaz de atender a essa demanda sem dificuldade.
O sucesso da CPA pode ser comparado ao modelo de Justiça Federal no Brasil, onde a presença do Estado como uma das partes é constante. Isso confere à Corte uma perspectiva única que integra aspectos do direito público em sua essência. Assim, a CPA não apenas proporciona um meio eficiente de resolução de conflitos, mas também assegura que as decisões levem em conta as complexidades e as nuances das relações entre Estados e particulares.
Em suma, a CPA se posiciona como uma alternativa robusta e confiável na resolução de litígios internacionais, contribuindo para a estabilidade e a segurança jurídica em um cenário global cada vez mais interconectado.
A Corte foi criada com um propósito claro de se estabelecer um foro internacional para a solução pacífica de disputas entre os Estados. Apesar de todos os avanços, a humanidade ainda convive com conflitos armados em várias regiões do mundo. Atualmente, quais são as possibilidades de a Corte auxiliar as nações na prevenção ou na solução desse tipo de conflito?
A Corte Permanente de Arbitragem (CPA) foi criada com um propósito claro: estabelecer um foro internacional para a solução pacífica de disputas entre Estados. No entanto, apesar dos avanços alcançados, a humanidade ainda enfrenta conflitos armados em diversas regiões do mundo. Nesse contexto, a CPA possui um papel relevante na prevenção e na resolução desses conflitos.
Entre as convenções resultantes da Segunda Conferência de Paz da Haia, destacam-se aquelas que ampliam o escopo do jus in bello, que regula o uso da força. A convenção para a resolução pacifica de conflitos internacionais, assinada em 1907, que dispôs sobre as leis e usos da guerra terrestre, por exemplo, foi um desenvolvimento importante em relação à elaborada na Conferência de 1899. Em seu artigo 22, a Convenção de 1907 reafirma que “os beligerantes não têm direito ilimitado quanto à escolha dos meios de prejudicar o inimigo.” Este preceito é um marco na evolução do direito internacional penal, pois antecede a tipificação de condutas como crimes de guerra, incluindo tanto a violação das normas que regem a condução das hostilidades quanto a proteção das vítimas de conflitos armados.
Outro aspecto significativo é a Convenção sobre a solução pacífica dos conflitos internacionais, que, por meio de nova codificação e desenvolvimento progressivo, aprimorou as diretrizes da Primeira Conferência. A Convenção de 1907, ratificada pelo Brasil, trata de métodos como bons ofícios, mediação, comissões internacionais de inquérito e arbitragem internacional, todos essenciais para a prevenção de conflitos.
Acho digno de registro, um exemplo histórico marcante que foi a proposta de Ruy Barbosa na primeira subcomissão da Comissão em 23 de julho de 1907. Ele sugeriu que as potências não deveriam alterar suas fronteiras por meio da guerra, exceto em casos de recusa à arbitragem ou violação de compromissos arbitrais. Embora sua proposta tenha sido considerada radical na época e não tenha sido aceita, ela gerou repercussão significativa, antecipando a proibição contemporânea da aquisição de território pela força e contribuindo para a ideia de que a paz deve ser buscada através do direito, além de estar alinhada ao princípio da não intervenção.
Hoje, a CPA pode continuar a desempenhar um papel crucial na prevenção de conflitos armados ao promover a arbitragem e a mediação como métodos viáveis para a resolução de disputas antes que elas se escalem para a violência. A capacidade da Corte de atuar em um espaço multilateral, unindo diversas nações em torno de soluções pacíficas, é uma ferramenta poderosa para a promoção da paz e da estabilidade internacional.
Em suma, a CPA possui um potencial significativo para auxiliar na prevenção e resolução de conflitos armados, utilizando a força do direito (e não o direito à força) e da diplomacia para fomentar um ambiente de cooperação e diálogo entre os Estados. No entanto, a eficácia desse potencial depende da disposição das partes em buscar a Corte como um meio para resolver suas disputas.