Administração pública, ambiente de trabalho e Justiça do Trabalho: a Súmula 736 do STF

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Diante de atos de assédio moral no serviço público, há adoecimento do ambiente de trabalho. Não há dúvida. Sendo assim, poderia ser requerida, por exemplo, a exoneração de gestores públicos assediadores. Nesse caso, a competência judicial para conhecer da pretensão seria da Justiça do Trabalho ou Justiça Comum?

Outro exemplo: a insalubridade é risco ambiental à saúde que deve ser minorado e um dos instrumentos é o pagamento do adicional de insalubridade: a qual justiça cabe conhecer da pretensão ao pagamento de adicionais de insalubridade a servidores públicos?

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O direito ao meio ambiente de trabalho saudável, a natureza jurídica do vínculo de trabalho e a competência para julgar pretensão que vise a combater desrespeito às normas ambientais são temas que não se confundem, embora se correlacionem.

Os servidores estatais, independentemente de seu vínculo, enquadram-se como trabalhadores. Desse modo, para o adequado exercício de suas funções, têm direito a trabalhar em ambiente em que se respeitem as normas de saúde, segurança e higiene do trabalho. Enquanto seres humanos trabalhadores, não importa a forma de sua seleção e não importa o tipo do vínculo estabelecido, e sim a condição de ser-humano trabalhador. Desta condição é que decorre a proteção ambiental garantida nos artigos 7º, XXII; 39, § 3º, e 200, VIII, todos da CF.

O expoente jurisprudencial do tema é a Súmula 736 do STF. Segundo o STF, “compete à justiça do trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores”. O texto da súmula é abrangente e não parece trazer exceções a partir do vínculo jurídico estabelecido, se administrativo ou celetista, ou mesmo da pessoa demandada, se pública ou privada. Segundo a súmula, se há alegação de violação de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde de trabalhadores, há a competência da Justiça do Trabalho.

Um dos motivos da abrangência da Súmula do STF é a dificuldade em se estabelecer a natureza prevalente dos vínculos em determinado ambiente de trabalho: não se pode esquecer que, na prática, ambientes de trabalho são ocupados por diversos trabalhadores, sendo comum que haja trabalhadores terceirizados, servidores públicos estatutários, trabalhadores temporários, empregados públicos cedidos entre outros. Por ocuparem o mesmo ambiente de trabalho, têm direito a condições hígidas de segurança, saúde e segurança. É nesse sentido a jurisprudência uníssona do Tribunal Superior do Trabalho: RR-100417-06.2018.5.01.0283, 6ª Turma, DEJT 20/10/2023 e RR-378-42.2020.5.05.0631, 2ª Turma, DEJT 01/09/2023.

Contudo, interpretações jurisprudenciais mais atuais do Supremo têm trazido diferenciações à sua Súmula 736, a depender das circunstâncias fáticas envolvidas, tudo a indicar que a súmula pode, em um futuro, passar por revisão em relação aos questionamentos que envolvam a Administração Pública.

Atualmente, interpretação do art. 114, I, da CF, c/c a ADI 3395, tem levado o STF, nos casos de pretensões de caráter mais individual que coletivo, a declarar a competência da Justiça Comum para conhecer de questões que envolvam, na prática, a incidência de normas administrativas.

Segundo o STF, há pretensões que, embora se utilizem do epíteto proteção de meio ambiente do trabalho, importam na incidência individual de normas de direito administrativo e, por isso, devem ser tratadas na Justiça Comum. Isso acontece em hipóteses como pretensões para pagamento de adicionais de insalubridade e pedidos para se determinar exonerações de servidores públicos por atos de assédio moral no trabalho. Nesses casos, o STF tem declarado a incompetência da Justiça do Trabalho e afastado a incidência da Súmula 736. Cita-se, como exemplo, os dois seguintes julgados:

(…) SÚMULA 736/STF. NÃO INCIDÊNCIA. RECURSO DE AGRAVO PROVIDO. (…) Assim, verifica-se que não se almejou, com a ação, corrigir irregularidades que atingem a todos trabalhadores em determinado ambiente laboral. (…) (Rcl 60220 AgR, Relator(a): LUÍS ROBERTO BARROSO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 22-08-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 23-10-2023  PUBLIC 24-10-2023)

(…) O Ministério Público do Trabalho move em face do Município de Pouso Alegre/MG, Ação Civil Pública, em andamento perante a 3ª Vara do Trabalho de Pouso Alegre, sob nº 0010195-83.2023.5.03.0178, tendo por objeto denúncia de assédio moral, em tese, praticados pela Chefe/Diretora de Fiscalização Tributária do Município DANIELLE LARAIA. (…) A Súmula 736/STF não se aplica ao caso em tela. Isso porque a controvérsia sob exame envolve apenas determinada categoria de servidores estatutários, quais sejam, os auditores fiscais municipais, todos eles, inclusive, relacionados individualmente no procedimento administrativo (…)”. (Reclamação 61977/MG, Min. Cristiano Zanin, com decisão publicada em 10/10/2023)

Portanto, a) o cunho individual, e não estritamente coletivo da pretensão à proteção ambiental e b) natureza da norma que incidirá para resolver a questão (se trabalhista ou se administrativa) é que têm, atualmente, levado o STF a interpretar mais restritivamente a Súmula 736.

Não obstante isso, é certo que a proteção coletiva do meio ambiente de trabalho tem sua efetividade dependente das medidas que materializarão essa proteção, o que, no caso público, demanda observância de normas especiais, de licitação, de leis de servidores públicos etc.

A Administração Pública, em tais circunstâncias, inevitavelmente, terá cenários de implementação de condições de saúde, higiene e segurança de trabalho diferentes do ator privado, como nos casos em que precisa adquirir bens (como equipamentos de proteção individual, coletes balísticos para policiais etc.), contratar serviços, pagar adicional de insalubridade, punir por atos de assédio moral, entre outras hipóteses. Nesses casos, ao fim e ao cabo, fala-se do meio ambiente de trabalho, mas com implementação peculiar à condição pública da pessoa jurídica da Administração Pública: licitação, planejamento de contratações, lei para pagamento de valores etc.

Por isso, razoável que a competência judicial siga a divisão pela pessoa demandada, no caso dos entes públicos, e não discussões a respeito da norma incidente ou da natureza do vínculo. Importante que caiba à Justiça Comum conhecer de questões, individuais ou coletivas, quando demandada a Administração Pública de Direito Público, e à Justiça do Trabalho caiba conhecer das questões celetista com a Administração Pública de Direito Privado, como prevê o art. 114, I, da CF. Na mesma linha, nos ambientes de trabalho mistos (servidores estatais e celetistas), a adoção da competência pela pessoa pública acabará atraindo a competência da Justiça Comum, a auxiliar na diminuição de insegurança jurídica que a matéria tem sofrido.

Mas que fique claro: o ambiente de trabalho, público ou privado, merece a mesma proteção mínima, mas a forma de implementação dessa proteção pode variar segundo a natureza da pessoa pública, a teor da interpretação vinda do art. 114, I, da CF, e da ADI 3395 do STF, sendo esses os parâmetros do estabelecimento da competência judicial.