ADC do decreto do IOF e os riscos para o STF

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No mês passado, o governo federal editou decreto para majorar alíquotas do IOF. Segundo o ministro da Fazenda, a medida era necessária “para reforçar o arcabouço fiscal, cumprir as metas para saúde financeira do Brasil”. Entretanto, o Congresso Nacional considerou que a majoração das alíquotas, sob a justificativa apresentada, exorbitava o poder regulamentar do presidente da República. Assim, aprovou decreto legislativo para sustar o ato normativo do Poder Executivo.

Inconformado, o governo federal, por meio da Advocacia Geral da União (AGU), ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal (STF) Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), a fim de que seja reconhecida a constitucionalidade de seu decreto e, consequentemente, a inconstitucionalidade do decreto legislativo que suspendeu o aumento de alíquotas do IOF.

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A presente reflexão se concentrará na análise do cabimento da ADC, especialmente quanto ao requisito de controvérsia judicial relevante. Importante destacar que este estudo não representa o posicionamento das instituições a que estão vinculados os articulistas, uma vez que somente contém sua opinião acadêmica e pessoal. Pois bem.

A Emenda Constitucional 3, de 1993, instituiu o instrumento constitucional da ADC, com o objetivo de pôr fim a uma controvérsia ou dúvida relevante a respeito da constitucionalidade de determinado ato normativo. A presunção de constitucionalidade é inerente aos atos normativos em geral. Quer-se dizer: presume-se a sua validade até pronunciamento judicial contrário.

Acontece que, como no Direito brasileiro é admitido o controle difuso de constitucionalidade, pode ocorrer um estado de insegurança ou instabilidade jurídica acerca da validade de determinado ato normativo, diante da existência de decisões judiciais conflitantes.

Para mitigar esse risco ou os efeitos de sua ocorrência, o legislador constituinte derivado, por sugestão de uma comissão de juristas, introduziu a ADC no ordenamento constitucional.

Na opinião daqueles juristas, a exigência de controvérsia judicial relevante era tão importante que um deles afirmou que a insegurança poderá resultar de pronunciamentos contraditórios da jurisdição ordinária sobre a constitucionalidade de determinada disposição ou de pronunciamentos contraditórios de órgãos jurisdicionais diversos sobre a legitimidade da norma poderão criar estado de incerteza imprescindível para a instauração da ação declaratória de constitucionalidade.

Na norma legal que regulamentou o dispositivo constitucional, o legislador ordinário, então, estabeleceu expressamente que a petição inicial indicaria a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição objeto da ação declaratória (artigo 14, inc. III, da Lei 9.868/1998). Veja-se que não se trata de controvérsia jurídica, mas judicial.

Controvérsia judicial acontece quando existem diversos pronunciamentos judiciais divergentes, antagônicos ou contraditórios entre órgãos jurisdicionais a respeito da interpretação de determinado ato normativo. Nesse sentido, a mera discussão jurídica a respeito de um ato normativo não é sinônimo de controvérsia judicial para fins de cumprimento do requisito legal em comento.

Tanto é assim que a doutrina estabelece que simples controvérsia doutrinária não se afigura suficiente para objetivar o estado de incerteza apto a legitimar a propositura da ação (ADC), uma vez que, por si só, ela não obsta à plena aplicação da lei.

O motivo para esse raciocínio é simples: impedir que o uso da ADC torne a Suprema Corte órgão consultivo sobre a constitucionalidade de determinado ato normativo.

No Brasil, diferentemente de alguns países europeus, não há um conselho constitucional com função consultiva a respeito da constitucionalidade de determinado ato normativo. O controle judicial de constitucionalidade se dá precipuamente de maneira repressiva, salvo em hipótese excepcional, exercido por parlamentar para tutelar, mediante mandado de segurança, seu direito líquido e certo ao devido processo legislativo.

Ademais, do ponto de vista da eficiência administrativa, seria desarrazoado ampliar ainda mais o escopo jurisdicional do STF, impondo-lhe encargos que extrapolam sua missão constitucional e sua estrutura de funcionamento. A corte já detém uma das mais elevadas cargas decisórias entre tribunais constitucionais do mundo, acumulando competências originárias, recursais e administrativas, além de gerir um orçamento bilionário[1].

Atribuir-lhe na prática funções consultivas ao aceitar ADCs sem controvérsia judicial ampliaria sua sobrecarga institucional e desviaria recursos humanos e financeiros de sua finalidade constitucional essencial.

Por isso, para ser conhecida, a ADC deve demonstrar a existência de controvérsia judicial relevante. No caso do IOF, segundo sustenta o governo, esse requisito estaria atendido pela existência de duas ações de controle de constitucionalidade cujo relator é o ministro Alexandre de Moraes.

A pergunta que surge é: a existência de ações judiciais, por si só, é indicativo de controvérsia judicial relevante? A resposta parece ser negativa, uma vez que “a inexistência de pronunciamentos judiciais antagônicos culminaria por converter, a ação declaratória de constitucionalidade, em um inadmissível instrumento de consulta sobre a validade constitucional de determinada lei ou ato normativo federal, descaracterizando, por completo, a própria natureza jurisdicional que qualifica a atividade desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal”.

Na verdade, a existência de ações judiciais apenas sugeriria, quando muito, controvérsia jurídica – elemento insuficiente para afastar a plena aplicação da lei impugnada. A simples existência de ações judiciais, por outro lado, sinaliza exercício legítimo do direito de ação previsto na Constituição, sem juízo de mérito.

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Somente seria possível interpretar que a existência de ações judiciais pudesse causar cenário de instabilidade jurídica tal que excepcionalmente justificasse o uso da ADC, segundo o STF, quando houvesse inúmeras ações judiciais em andamento em que a constitucionalidade da lei ou do ato normativo fosse contestada.

Veja-se que a exceção somente seria admissível por conta da multiplicidade de ações em diferentes órgãos jurisdicionais. No caso do IOF, não se verificam inúmeras ações em andamento em diferentes órgãos jurisdicionais, mas apenas duas ações de controle concentrado no STF.

Isso sugere que o objetivo do governo, ao optar pela ADC, parece realmente ter sido outro, qual seja, não criar um ambiente de tensão política com o Congresso Nacional, na medida em que a discussão constitucional poderia se dar de forma juridicamente válida por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Decreto Legislativo. Esse objetivo também ficou refletido em falas de representantes do governo, como do próprio líder do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados[2].

Essa estratégia política acaba por reduzir o STF a reles órgão consultivo constitucional. Trata-se de finalidade frontalmente contrária à sistemática constitucional e à própria jurisprudência pacífica da Suprema Corte a respeito da necessidade de demonstração da existência de controvérsia judicial relevante como requisito para o conhecimento da ADC.

A subversão do uso da ADC em hipóteses não previstas na norma legal e na jurisprudência cria enorme risco de um precedente perigoso. O eventual conhecimento da ADC no caso do IOF não seria apenas uma decisão controversa, mas, principalmente, incentivaria a propositura de inúmeras outras ADCs com a finalidade explícita ou implícita de obtenção de pronunciamentos abstratos do STF, deslocando-o de sua função jurisdicional para um papel opinativo.

Com isso, a racionalidade do sistema de controle concentrado poderia ficar gravemente comprometida, agravando a já excessiva carga processual da corte e fragilizando os mecanismos de separação de poderes.


[1] No ano de 2024, foi disponibilizado ao Supremo Tribunal Federal um orçamento (LOA + créditos) de R$ 908.871.485,00.

[2] O líder do governo na Câmara, deputado Lindbergh Farias (PT-RJ), em Sessão Deliberativa de 01/07/2025 no plenário, afirmou: “Você veja que o instrumento utilizado pela Advocacia-Geral da União ao invés de ser um instrumento de se pedir a inconstitucionalidade do PDL. O que fez a AGU? Nós pedimos uma Ação Direta de Constitucionalidade. Não é que entramos contra o Congresso. O objetivo do governo não é escalar uma crise, o objetivo do governo é um só: defender as prerrogativas do Poder Executivo.