A Advocacia-Geral da União (AGU), representando a Presidência da República, ajuizou recentemente a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 98, pleiteando o reconhecimento da constitucionalidade de dispositivos legais que definem a base de cálculo das contribuições ao PIS e à Cofins. Em específico, busca-se afirmar a legitimidade da inclusão do ISS, do próprio PIS/Cofins e do crédito presumido de ICMS na composição da receita bruta das empresas.
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Trata-se de tentativa explícita de reverter, por via oblíqua, entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sob a sistemática da repercussão geral no Tema 69 para sagrar-se vitorioso nos Temas 118 (exclusão do ISS), 1067 (exclusão do próprio PIS/Cofins) e 843 (exclusão do crédito presumido do ICMS) em clara afronta à segurança jurídica e à autoridade dos precedentes vinculantes.
O pano de fundo: a tese do “direito de tributar tudo”
A linha argumentativa da AGU parte da alegada existência de “controvérsia jurisprudencial” decorrente da utilização da ratio decidendi do Tema 69 — que excluiu o ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins — como fundamento para excluir outros tributos da mesma base. O objetivo é delimitar os efeitos da decisão ao caso concreto, evitando sua extensão a hipóteses análogas, como a inclusão do ISS, do próprio PIS/Cofins e de créditos presumidos do ICMS.
Contudo, ao fundamentar a ADC, a AGU invoca a chamada Teoria do Fluxo Circular da Renda, segundo a qual o dinheiro circula entre os diversos agentes econômicos e pode, portanto, ser tributado sucessivamente. Tal visão esbarra em uma questão essencial: a constitucionalidade da base de cálculo das contribuições sociais exige que os valores nela incluídos representem acréscimo patrimonial efetivo e definitivo.
Tema 69: Receita com definitividade e acréscimo patrimonial
O STF, ao julgar o Tema 69 da repercussão geral, firmou tese de que o montante do ICMS não compõe o faturamento das empresas, pois representa apenas um ingresso transitório de caixa, repassado posteriormente ao Estado. Portanto, carece dos elementos constitutivos de receita: definitividade e acréscimo patrimonial.
Nas palavras do ministro Luiz Fux, no voto proferido no Tema 69:
“A parcela correspondente ao ICMS pago não tem, pois, natureza de faturamento (e nem mesmo de receita), mas de simples ingresso de caixa, não podendo, em razão disso, comportar a base de cálculo quer do PIS, quer da Cofins.”
Esse entendimento independe da sistemática de arrecadação do tributo (cumulativa ou não cumulativa). A natureza jurídica do valor recebido e repassado ao ente tributante permanece inalterada: trata-se de recurso que não pertence ao contribuinte.
O equívoco conceitual da AGU
A argumentação sustentada na ADC nº 98 incorre em grave confusão entre técnica arrecadatória e natureza jurídica do tributo. A não cumulatividade do ICMS, por exemplo, foi apontada como fator determinante (não o único) para sua exclusão da base de cálculo do PIS/Cofins. No entanto, o fundamento decisório do STF foi a transitoriedade do valor, e não o método de apuração.
A tentativa da AGU, ao defender a inclusão do ISS, do PIS/Cofins e dos créditos presumidos do ICMS na base de cálculos das mesmas contribuições, desconsidera que tais valores igualmente não integram o patrimônio da empresa. São repassados ao Fisco, de modo compulsório, e não representam riqueza nova gerada pelo contribuinte.
A força obrigatória dos precedentes
O ministro Edson Fachin, no julgamento do Tema 1348, reforçou o papel normativo da ratio decidendi nos precedentes vinculantes:
“A ratio decidendi é a norma formulada a partir da decisão de um caso por uma Corte Suprema em que as razões necessárias e suficientes operam sobre fatos relevantes para determinar, no todo ou em parte, a solução de uma questão idêntica ou semelhante.”
Ao tentar restringir o alcance da tese do Tema 69, a AGU propõe, na prática, uma ruptura institucional com o próprio sistema de precedentes obrigatórios, criado para garantir isonomia, segurança jurídica e previsibilidade.
Uma tentativa de tributação inconstitucional travestida de constitucionalidade
A ADC nº 98 não passa de uma manobra para legitimar a tributação de valores que não integram o patrimônio dos contribuintes. O que se busca, em última análise, é uma chancela do STF para que o governo federal continue exigindo PIS e Cofins sobre parcelas que são, juridicamente, receitas públicas e não empresariais.
Caso acolhida, a ação poderá provocar insegurança jurídica generalizada, incentivando a reabertura de temas já julgados e comprometendo a estabilidade do sistema tributário. Pior: abre-se espaço para um perigoso expansionismo fiscal, travestido de interpretação conforme a Constituição.
Considerações finais
O Supremo Tribunal Federal tem, com a ADC nº 98, a oportunidade — e a responsabilidade — de reafirmar sua função constitucional de garante dos direitos fundamentais e da limitação do poder de tributar. Ao manter a coerência com o entendimento firmado no Temas 69, aplicando a mesma ratio decidendi aos Temas 118, 1067 e 843, o STF fortalecerá o Estado de Direito, preservando a função dos precedentes e impedindo abusos em nome da arrecadação.
O Judiciário não pode se tornar instrumento de validação de práticas tributárias abusivas. A Corte Suprema deve ser o freio do expansionismo fiscal inconstitucional, e não seu avalista.