Acórdão-ata ou acórdão-decisão? O STF e a prática per curiam

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No julgamento da ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas, o Plenário do Supremo Tribunal Federal proferiu a sua primeira decisão per curiam, isso é, um pronunciamento único, em nome da Corte, diferentemente da ampla prática de uso do formato seriatim ou seriático de acórdão, no qual cada ministro pronuncia individualmente seu voto.  

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Em um formato de decisão per curiam a decisão é estruturada argumentativamente em uma única peça, condensando de forma indivisível o entendimento do colegiado, exceção feita à apresentação de divergências por meio de votos apartados, nos ordenamentos jurídicos que assim admitem.

Tradicionalmente o Brasil adota o formato seriatim de decisão, em que há a apresentação de relatório e voto do relator e, na sequência, colheita de votos dos demais juízes. Além do enfeixamento do relatório e dos votos, o acórdão conta também com o dispositivo do resultado do julgamento, extrato da ata da sessão e ementa.

Anteriormente à ADPF das Favelas já se vinha revelando certa preocupação do tribunal quanto à construção coletiva do texto da tese de julgamento. Ou seja, a elaboração da tese nesses moldes é, vistas as coisas sob outro ângulo, a construção de uma “fórmula per curiam[1], necessária para o fim de contornar as dificuldades trazidas pelo modelo seriatim, ainda que de regra não haja admissão pública a respeito dessas dificuldades.

Ainda mais recentemente, o voto complementar conjunto dos ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso na ADI 7.222, que tratou do piso salarial nacional da enfermagem, em junho de 2023, já apontava uma tendência da corte no sentido de experimentar a autoria coletiva dos textos decisórios.

Portanto, com a ADPF das Favelas, o STF deu um passo a mais no sentido de prestigiar a autoria coletiva de seus pronunciamentos.

O fato é que a Constituição Federal exige julgamentos públicos (artigo 93, inciso IX) e, ainda que os países que adotem formato per curiam de regra pratiquem sessões a portas fechadas, não há imposição no sentido de que uma decisão per curiam somente possa ser proferida pela corte em um cenário de sessões secretas.

Inclusive, os dois primeiros Regimentos Internos do STF, de 1891[2] e 1909[3], descreviam a prática em que a decisão, redigida pelo relator, era levada à aprovação dos demais ministros na sessão pública de julgamento. É inegável que a ideia de unidade institucional transmitida pelo formato per curiam seria em grande parte mitigada pela exposição pública de divergências, o que, porém, não elide outros inegáveis benefícios.

Em um formato de decisão por voto único ganha relevância observar dinâmicas de interação entre os juízes, a existência de lideranças, adesões não justificadas e diferentes níveis de engajamento na construção ou alteração do texto decisório.

No caso da ADPF das Favelas não houve a explicitação de tais interações, tendo o tribunal anunciado, na sessão, a decisão colegiada tomada a partir do consenso anteriormente assumido, sem prejuízo das intervenções orais realizadas por alguns ministros na mesma sessão. Aguarda-se a publicação do acórdão em inteiro teor para conhecimento preciso do seu conteúdo.

De todo modo, é fato que não se conhece a ambiência na qual o consenso foi construído e o texto final, redigido. O ministro relator, Edson Fachin, e o presidente Luís Roberto Barroso, inclusive, mencionaram as reuniões internas que foram realizadas para construção do acórdão.

Antes de refletir sobre o ponto, é preciso lançar a atenção sobre uma certa pendularidade sobre duas possíveis compreensões a respeito do papel do acórdão em um julgamento.

Em uma primeira visão, o acórdão “é produzido de forma secundária, contando, sobretudo, com a colaboração realizada pelos setores internos (secretarias) de apoio judiciário, e é montado no sentido de resgatar o momento da sessão[4]. Essa dinâmica identifica-se com o que chamo de “acórdão-ata”. Nela, o acórdão é visto, ainda que inconscientemente, como um reflexo da decisão, a qual é proferida durante a sessão de julgamento.

Espera-se do acórdão certa fidedignidade às falas e dinâmicas, sem prejuízo de que, todavia, a fidedignidade pretendida seja incongruentemente manipulada por meio de inserção de razões escritas após a sessão e pelo cancelamento de intervenções orais.

Contrapõe-se a isso a ideia de “acórdão-decisão”[5], em que há prestígio e centralidade do próprio texto. Nela, há a compreensão de que o próprio acórdão consubstancia a resposta da corte. A preocupação é dirigida à redação do pronunciamento unívoco e não às falas dos juízes ao longo do percurso de construção do texto. A sessão passa a ser um instrumento de construção do acórdão.

Portanto, é preciso que os observadores da nova experiência assumam a compreensão de que o foco da decisão per curiam não é a sessão de julgamento e que é natural que haja uma perda dos níveis de acompanhamento das divergências, contrariamente ao que se está acostumado a verificar no modelo seriático. Isso porque o acórdão per curiam não é vocacionado a descrever o caminho tomado para o proferimento da decisão durante a sessão, mas sim, a corporificar a própria decisão.

Entretanto, não se nega que somente o anúncio da decisão na sessão de julgamento, sem que haja qualquer tipo de exposição ao menos sobre as propostas de alteração da minuta de texto inicial –  supostamente redigida pelo ministro relator –  parece não atender à exigência de publicidade prevista constitucionalmente no art.  93, IX. Algumas considerações sobre o ponto foram trazidas na análise Das 11 ilhas ao Triângulo das Bermudas, de Felipe Recondo e Luiz Fernando Gomes Esteves.

Não é possível, de antemão, definir se uma corte pode ser considerada mais ou menos deliberativa a partir do formato de apresentação de seus acórdãos. Todavia, no modelo per curiam “a combinação central dos fatores de texto e autoria coletiva torna a colegialidade dependente de uma interação colaborativa, o que induz à adoção de comportamentos deliberativos.”[6] 

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Ao mesmo tempo, previnem-se problemas relacionados à incoerência argumentativa e à identificação das razões de decidir. Em um processo estrutural, são potencializados os benefícios do uso da prática per curiam, em razão da alta complexidade social da matéria.

Por todos esses aspectos é preciso reconhecer o avanço da Corte na adoção de uma decisão por voto único e, ao mesmo tempo, refletir sobre os desafios que se apresentam no uso deste modelo.


[1] SILVA, Maria Eduarda Andrade e. Deliberação judicial, votação e acórdão. Refletindo sobre processo decisório e colegialidade nos tribunais. Londrina: Ed. Thoth, 2023, p.182.

[2] “Art. 49. É facultado ao relator ou ao juiz que houver de redigir a sentença levar os autos para apresental-a redigida na sessão immediata. Em todo caso, ella só será lançada nos autos pelo secrtetario depois de approvada a redacção, e com a data do dia em que foi proferida.” Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/biblioteca/RegimentoInterno/RI1891/1891.pdf. Acesso em 04.04.2025.

[3] “Art. 56. É facultado ao relator, ou ao juiz designado, levar os autos comsigo para redigir a sentença e apresental-a na sessão immediata; mas, em todo caso, deverá ella ser lançada aos autos com a data do dia em que houver sido proferida, podendo sua redacção ser submetida á prévia approvação do Tribunal, si o requerer algum juiz.” Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/biblioteca/RegimentoInterno/RI1909/1909.pdf  Acesso em 04.04.2025.

[4] SILVA, Maria Eduarda Andrade e. Deliberação judicial, votação e acórdão. Refletindo sobre processo decisório e colegialidade nos tribunais. Londrina: Ed. Thoth, 2023, p.192.

[5] SILVA, Maria Eduarda Andrade e. Deliberação judicial, votação e acórdão. Refletindo sobre processo decisório e colegialidade nos tribunais. Londrina: Ed. Thoth, 2023, p.174 e 192.

[6] SILVA, Maria Eduarda Andrade e. Deliberação judicial, votação e acórdão. Refletindo sobre processo decisório e colegialidade nos tribunais. Londrina: Ed. Thoth, 2023, p.179.