Não há dúvidas de que a Justiça do Trabalho cumpre um papel importante em um país de grande disparidade social. No entanto, um equilíbrio é sempre necessário a fim de que ela não estimule uma litigância exagerada, nem configure um obstáculo ao empreendedorismo e à inovação na economia e não crie disparidades regionais. E a única forma de se discutir isso é com mensuração de dados e não com ideologia.
Nessa esteira, as ações trabalhistas na Justiça do Trabalho têm crescido a taxas sistematicamente acima da taxa de crescimento da economia brasileira, o que sinalizaria uma preocupação, pois a Justiça tem um custo a ser subsidiado pelo contribuinte e nem todo brasileiro é empregado. O cuidado em termos de política pública judicial é de não incentivar uma sobreutilização do sistema público a partir de agentes econômicos que se organizam para fins de ganhos pelos incentivos gerados (que se manifesta sob a forma de litigância predatória ou eventualmente abusiva ou oportunista) e nem criar disparidades regionais no Poder Judiciário Federal.
A título de estudo de caso, tido na percepção das empresas e advogados trabalhistas como costumeiramente “pró-empregado”, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRT4) destacou um aumento de 20% nos pagamentos de ações trabalhistas em 2023, atingindo a soma notável de R$ 5,2 bilhões. Este aumento coincide com o aumento no número de processos judiciais (em um momento de crescimento econômico do país medido pelo PIB), indicando, portanto, uma crescente demanda por litigância que não pode ser explicada apenas por demissões ou busca por direitos ou mesmo pelo aumento da renda, emprego da população local.
Como vemos na tabela abaixo, o crescimento das indenizações é surpreendente. As indenizações superam, inclusive, o aumento de novos processos ou de processos julgados, indicando aumento dos pagamentos médios realizados.
Crédito: Thomas Conti/AED Consulting
Preocupados com uma pesquisa baseada em dados e diagnóstico com base em evidências científicas, realizamos um trabalho jurimétrico de grande alcance a fim de verificar eventual hipótese de litigância predatória ou mesmo oportunista do ponto de vista econômico, e testar aquela percepção sobre a Justiça do Trabalho gaúcha e os incentivos que ela gera no mercado da advocacia. Fizemos uma extração em massa de dados públicos de todas as movimentações processuais e decisões judiciais da Justiça do Trabalho nos TRT1, TRT2 e TRT4, no período de 2016 a 2023.
Para facilitar a identificação de sinais de litigância predatória ou oportunista, nosso foco foi em processos contra empresas de um mesmo setor nos três respectivos estados: Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Essa estratégia permite descartar a hipótese da litigância explicada pelo oportunismo do réu – pois uma empresa que atua nacionalmente reproduz em todos os estados as suas práticas de gestão, não tendo por que ser tratada diferentemente pelo Poder Judiciário de diferentes estados da federação quando a Justiça é justamente Federal, como a do Trabalho.
Conseguimos identificar que no TRT4 o número de processos contra empresas deste setor é muito maior, e os valores envolvidos nestas ações também são substancialmente mais altos que nos outros estados – chegando a quase o dobro do valor.
Ao analisar mais a fundo estes processos e seus autores, identificamos padrões que confirmaram algumas das intuições que os advogados trabalhistas de empresas percebiam na prática: os valores econômicos envolvidos nas disputas judiciais no TRT4 são desproporcionalmente elevados.
Para comparação: em processos trabalhistas do mesmo setor, encontramos valores médios das causas de R$ 138 mil no TRT2 (São Paulo, capital), R$ 211 mil no TRT1 (Rio de Janeiro), e R$ 293 mil no TRT4 (Rio Grande do Sul). Indenizações maiores, por sua vez, são um incentivo claro para potenciais litigantes serem atraídos pelos ganhos maiores atuando no Rio Grande do Sul.
Para avaliar essa hipótese, buscamos analisar também duas características esperadas desse tipo de litigância organizada: concentração das ações em poucos advogados, e alta similaridade textual nas peças destes advogados. De fato, obtivemos resultados que reforçam a hipótese de uma prática coordenada e estratégica, visando maximizar os ganhos financeiros a partir de indenizações trabalhistas.
No TRT4, 0,2% dos advogados são responsáveis por 57,9% das ações contra as empresas do setor em questão, no período entre 2016 e 2023. Uma concentração impressionante que destoa da usual e da já elevada concentração na Justiça do Trabalho. No TRT2, os 0,2% dos advogados mais litigantes foram responsáveis por 15,5% dos processos, enquanto no TRT1 este mesmo percentual respondeu por 24,9% das ações.
Também foi possível apurar que no caso mais extremo do TRT4, vários dos advogados entre os maiores litigantes integravam um mesmo escritório de advocacia. Utilizando amostragem de processos deste escritório e comparando com amostras aleatórias de processos também do TRT4, mas oriundos de outros escritórios, foi possível comparar a semelhança textual das peças.
Valendo-se de técnicas de processamento de linguagem natural, identificamos que a semelhança interna das peças do mencionado escritório é, em média 0,82 (esta métrica vai de 0, totalmente dissimilar, a 1, se forem textos idênticos), enquanto a semelhança média interna das demais peças analisadas é de 0,42. Isso significa que o escritório composto pelos advogados mais litigantes do TRT4 produz peças textualmente muito mais semelhantes entre si do que são peças aleatórias do TRT4 quando comparadas entre si.
A natureza e a estrutura recorrente dos pedidos mais frequentes, como indenizações por danos morais e horas extras, também sugerem um padrão pouco sofisticado das peças produzidas, o que por sua vez fortemente sugere elevado grau de litigância organizada empresarialmente. A uniformidade desses pedidos, independentemente das práticas regionais e específicas das empresas, aponta para uma abordagem “modelo” na litigância.
Essas considerações reforçam a preocupação de que a litigância predatória ou organizada explique parte do aumento das indenizações trabalhistas. E mesmo se não se tratar de algo abusivo, preocupa o contexto do aumento substancial nos valores envolvidos em disputas judiciais no Rio Grande do Sul, acima das médias de São Paulo e Rio de Janeiro. Sinalizaria realmente uma disparidade regional e um prejuízo a quem realiza negócios no Rio Grande do Sul, além do incentivo à litigância naquele estado.
Finalmente, para o mercado de advocacia, o grau de concentração das causas em um escritório cria barreiras à entrada do ponto de vista concorrencial a novos entrantes (que não dispõe dos mesmos recursos para investimento em tecnologia e marketing) e incentiva um ambiente propício à atuação organizada e estratégica que sobrecarrega o sistema público de justiça subsidiado pelo contribuinte. Portanto, é algo que deve também atrair o enderece da OAB.