Acesso à informação nos EUA precisa ser reimaginado, diz autora; e no Brasil?

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Estou no quarto ano de doutorado em administração pública no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e tenho pesquisado a contribuição do acesso à informação para a accountability pública. Recentemente chegou às minhas mãos um livro que me chamou bastante a atenção: Saving the freedom of information act (Salvando a Lei de Acesso à Informação, em tradução livre), da pesquisadora Margaret B. Kwoka, da Ohio State University, publicado em 2021 pela Cambridge University Press.

Kwoka atuou no Comitê Consultivo Federal da Lei de Acesso à Informação dos Estados Unidos, apelidada de FOIA (reunião das primeiras letras de Freedom Of Information Act) e recentemente recebeu o prêmio Fulbright García Robles de Ciências Sociais e Humanas 2022-2023 pelo projeto intitulado “Supervisão Independente das Leis de Transparência no México” no Instituto de Investigación en Rendición de Cuentas y Combate a la Corrupción na Cidade do México.

O livro é resultado de alguns anos de pesquisas em busca de respostas para duas perguntas: quem usa a FOIA? E quais registros essas pessoas estão tentando obter?

A autora apresenta no início três observações: primeiro, o governo norte-americano recebe cada vez mais pedidos de acesso à informação – aqui vejo uma semelhança com o Brasil que já nos emparelha com as preocupações da autora – o que, segundo ela, leva-a concluir que a lei deve estar sendo útil, servindo aos interesses de alguém. A segunda é que, aparentemente, a lei está atendendo ao seu principal propósito, que é de permitir a participação social, por cidadãos e pela imprensa, na fiscalização da atuação do governo. E a terceira é que, enquanto alguns celebram o grande números de pedidos como uma evidência do sucesso da FOIA, surgem críticas relacionadas aos custos associados a ela, às falhas de atendimento à FOIA, e até argumentos para que ela deixe de existir.

A professora Kwoka solicitou os registros de pedidos de acesso à informação feitos ao governo dos Estados Unidos e, de posso desse banco de dados, cerca de 3/4 dos pedidos, apresenta, logo da primeira parte uma constatação preocupante.

A FOIA, em grande parte, não é usada para promover a accountability democrática, ou seja, em vez de pedidos de acesso à informação buscando informações de interesse coletivo, a grande maioria dos pedidos são, conforme a autora, pedidos “na primeira pessoa” (“first person requests”), isto é, pedidos de interesse individual, transformando-se no que a autora chamou de problema fundamental da transparência governamental. A eficácia da FOIA acaba prejudicada pelo grande volume de pedidos de acesso à informação não relacionados com a supervisão das ações do governo.

Será que temos o mesmo problema no Brasil? A autora esclarece que os pedidos são legítimos, podendo até ser do interesse público em um sentido mais amplo, mas, por outro lado, não estão buscando obter informações para sensibilizar o público em geral sobre ações do governo.

Para Kwoka, alguns órgãos estão sobrecarregado de pedidos, e muitos deles não dispõem de recursos e de tecnologias necessários (especialistas, processos e sistemas) para atendê-los no prazo, acabando focando nas solicitações rotineiras, deixando de lado aquelas relacionadas a temas mais oportunos (ligados aos objetivos da FOIA) e urgentes (como os feitos pela imprensa).

Segundo a autora, os atrasos e os encargos, como exigências de presença para obter cópias, tarjamento de termos constantes dos documentos etc. são as principais queixas dos jornalistas, e que, segundo um alto funcionário de um órgão, os sistemas são configurados para atender às solicitações que chegam em massa, em grande volume, quase todos de “interesse individual”, deixando as de “interesse coletivo” como pendentes.

Para Kwoka, o fato de a FOIA ser usada diferentemente de como foi pensando na sua criação é que dá sustentação às críticas que ela recebe. Segundo uma funcionária federal que trabalhou com a FOIA em três agências diferentes: “Os Objetivos da FOIA, como ela está sendo implementada atualmente, não podem ser alcançados. FOIA é um Titanic, afundou há anos”.

Kwoka sugere que se deve colocar no centro da questão o elevado volume de pedidos com interesse prioritariamente individual, buscando “reimaginar” o futuro do relacionamento entre governo e cidadãos realmente interessados em usar a FOIA como ela foi criada. Segundo ela, o processo não está funcionando bem, nem para os solicitantes, nem para os órgãos governamentais, e, consequentemente, não está havendo contribuição para que a FOIA compra sua missão precípua.

Na primeira parte do livro a autora faz sua defesa integral da existência e manutenção da FOIA, entretanto reconhece sre difícil quantificar os custos relacionados à FOIA, bem como os benefícios da FOIA, pois, além da informação em si, pode haver um infinito número beneficiários, aos quais não se consegue chegar para confirmar o uso da informação, principalmente no caso de divulgações feitas por jornalistas a partir de pedidos feitos. Apesar dos pesares, segundo Kwoka, há muitas evidências de que a FOIA, mesmo imperfeita como está, atende a interesses bastante significativos.

Na segunda parte, a autora explora quem utiliza a FOIA, destacando padrões interessantes de solicitantes. O primeiro grupo, responsável por metade dos pedidos enviados anualmente ao governo federal, é composto por imigrantes, que fazem pedidos predominantemente de interesse pessoal. Além disso, há solicitações relacionadas a benefícios sociais, emprego, genealogia e temas de interesse de pessoas jurídicas, incluindo casos de “revendedores” de informações, como empresas de consultoria.

Kwoka sugere resgatar a missão da FOIA concentrando esforços em incentivar órgãos a atender às necessidades de informações de interesse privado fora da FOIA. Ela argumenta que, embora ninguém deva ser negado o direito de usar a FOIA, alternativas mais eficazes poderiam reduzir significativamente os pedidos, liberando recursos para atender demandas diretamente ligadas à missão da FOIA.

Como sugestões, Kwoka indica o reforço da transparência ativa, ação que segundo a autor e outros, reduziria o volume de pedidos, a implantação de reformas nas práticas de julgamento dos pedidos, e modificações nos processos de obtenção de informações pessoais, que, possivelmente, eliminariam a necessidade de indivíduos fazerem uso da FOIA para obter tais informações que poderiam ser obtidas por outros meios, menos burocráticos.

Como conclusão, diz a autora, que manter todos os pedidos de acesso à informação na fila de pedidos via FOIA ofusca os debates sobre se os recursos da FOIA estão sendo bem gastos, bem como abafa as estratégias sensatas dos órgãos para reduzir a necessidade de recorrer à FOIA.

Kwoka argumenta que não há evidências de que os órgãos evitem conscientemente alternativas à FOIA para manter um bom desempenho, mas suspeita que o sistema pode estar configurado com métricas que favorecem a inclusão de quase todos os pedidos na FOIA. Algumas entrevistas com agentes públicos confirmaram a falta de incentivos para buscar alternativas. Ela destaca que os órgãos públicos devem reimaginar o fornecimento de informações como uma função essencial, reservando os dados de caráter pessoal para outros canais.

Comparando com o Brasil, que teve sua Lei de Acesso à Informação vigente em 2012, vemos que aqui temos também um grande volume de pedidos, mais de 1,3 milhão em 11 anos. Como fez a pesquisadora Kwoka, pergunto: quem são os solicitantes de pedidos de acesso à informação no Brasil e o que eles solicitam?

Devido à ausência obrigatória de dados demográficos no Brasil, o Painel da LAI revela que aproximadamente 546 mil solicitações são de pessoas físicas, enquanto 22 mil são de pessoas jurídicas. A falta de informações demográficas e socioeconômicas obrigatórias impede uma análise mais aprofundada, mas, com base nos dados disponíveis, nota-se uma participação relativamente baixa de jornalistas (5.002 solicitantes), pesquisadores (8.416 solicitantes) e estudantes (46.002 solicitantes).

Os dados do Painel da LAI indicam que o tópico mais requisitado no Brasil é “acesso à informação,” com aproximadamente 234 mil solicitações, seguido por “outros em economia e finanças” (141 mil), “serviços públicos” (112 mil), “Educação superior” (63 mil), “outros em previdência” (60 mil) e “outros em saúde” (43 mil). Entretanto, é pertinente questionar a eficácia dessa categorização, pois 234 mil solicitações sobre “acesso à informação” parecem redundantes, e a classificação genérica de “outros” necessita de uma análise mais aprofundada e específica por parte do governo.

Apesar de progressos, é crucial estudar a natureza dos pedidos de acesso à informação no Brasil, questionando se enfrentamos o mesmo problema dos EUA, com predominância de solicitações de interesse pessoal. A sugestão da professora Kwoka de explorar abordagens alternativas, fora da LAI, merece consideração. Poderíamos reservar a LAI para pedidos que verdadeiramente contribuam para sua missão? Estas são indagações relevantes.