A vinculação da administração tributária aos precedentes judiciais

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Em 2010, os contribuintes passaram a ser penalizados com multa isolada de 50% do valor do débito nos casos em que o fisco federal discordava da compensação pretendida, independentemente do seu fundamento, com base no art. 74, §§15 e 17, da Lei n. 9.430/1996, incluído pela Lei n. 12.249/2010.

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Menos de quatro anos depois, o leading case sobre o tema chegava ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio do Recurso Extraordinário (RE) n. 796.939/RS, com o reconhecimento da existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada (i.e., direito de petição). Em 2023, foi finalizado o julgamento com a edição da tese: É inconstitucional a multa isolada prevista em lei para incidir diante da mera negativa de homologação de compensação tributária por não consistir em ato ilícito com aptidão para propiciar automática penalidade pecuniária.

E, como se operou o cumprimento dessa decisão pelos órgãos do Ministério da Fazenda? De forma bastante simples e objetiva: não mais se lavraram autos de infração relacionados a essa multa e as cobranças já realizadas vêm sendo canceladas, em regra, sem a necessidade de nova judicialização para fazer valer o precedente do STF.

Iguais a esse, há inúmeros outros temas definidos pelos Tribunais Superiores que submetem o Poder Público e são cumpridos de maneira extrajudicial, justamente pelo efeito vinculante expresso na legislação.

Um passo além (e essencial)

A consolidação do sistema de precedentes no ordenamento jurídico brasileiro transformou de forma profunda a atuação da Administração Tributária e o funcionamento do contencioso fiscal. A partir da Constituição de 1988 e da paulatina construção jurisprudencial do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), tornou-se imprescindível que a Fazenda Pública observasse decisões judiciais vinculantes, abandonando a postura tradicionalmente litigante e adotando uma conduta de alinhamento institucional.

Essa evolução culminou em alterações legislativas significativas, especialmente com a Lei n. 13.874/2019, que introduziu novos dispositivos na Lei n. 10.522/2002, prevendo a dispensa da constituição de créditos tributários e da interposição de recursos quando a matéria já tiver sido decidida de forma desfavorável à Fazenda Nacional em caráter vinculante.

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O caso comentado na abertura deste artigo exemplifica esse novo paradigma: a aplicação direta de precedente dos Tribunais Superiores, fixado em regime de recurso repetitivo ou repercussão geral, que impede novos lançamentos tributários, impõe anulação aos lançamentos já realizados e provoca a manifestação do representante judicial do fisco à desistência de recursos judiciais.

Esse breve contexto demonstra o amadurecimento institucional da Administração Tributária, que passa a atuar de modo coerente, eficiente e conforme o princípio da segurança jurídica.

Litigante assíduo

Durante décadas, a União figurou como o maior litigante do país, movendo e respondendo a um volume desproporcional de processos. Muitas dessas ações eram pautadas em uma concepção ultrapassada de “direito indisponível”, segundo a qual a Fazenda Nacional deveria recorrer de toda decisão contrária aos seus interesses.

Esse modelo mostrou-se insustentável. O custo social e econômico do contencioso, somado ao impacto negativo sobre a confiança do contribuinte, impôs a necessidade de reformulação. Foi nesse contexto que a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) editou o Parecer nº 492/2010 e as Portarias nº 294/2010 e nº 1.267/2010, inaugurando uma nova diretriz de atuação: concentrar esforços em casos relevantes e alinhar-se aos precedentes firmados pelos Tribunais superiores, mediante atitude cooperativa e com respeito ao cidadão.

Essa política ganhou respaldo legislativo com a inserção dos arts. 18, 19 e 19-A da Lei n. 10.522/2002, que disciplinam a dispensa de atos processuais e administrativos quando a tese jurídica estiver pacificada pelo STF ou STJ. Com isso, os auditores fiscais e os procuradores passaram a estar juridicamente vinculados a essas decisões, impedindo a constituição ou cobrança de créditos tributários contrários a entendimentos consolidados.

A partir de então, a Administração Tributária deixou de ser apenas executora de políticas arrecadatórias para se consolidar como agente de aplicação do direito, comprometido com a coerência e a previsibilidade do sistema jurídico.

Desjudicialização via contencioso administrativo tributário

Outro exemplo relevante entre casos paradigmáticos dessa transformação no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) é a (não) incidência previdenciária sobre aviso prévio indenizado.

O STJ colocou um ponto final na discussão ao julgar o Recurso Especial (REsp) n. 1.230.957/RS, de relatoria do ministro Mauro Campbell Marques. No dia 26/2/2014, a 1ª Seção do STJ, sob a sistemática de recursos repetitivos, definiu pela não incidência de contribuições previdenciárias na espécie, pelo fato de o aviso prévio indenizado não corresponder a serviços prestados, dando ensejo ao Tema n. 478.

Após a decisão, a PGFN publicou a Nota PGFN/CRJ n. 485/2016 (em relação à contribuição do empregado), o Parecer SEI N. 15147/2020/ME (em relação ao SAT/RAT e ao seu adicional bem como às contribuições de terceiros) e o Parecer SEI nº 7698/2021//ME, ratificando e consolidando todos os pronunciamentos quanto à impossibilidade de cobrança do tributo e determinando a dispensa da constituição dos créditos correspondentes.

Quando o caso chegou ao Carf, os conselheiros aplicaram o precedente do STJ e o parecer vinculante da PGFN, decidindo pelo cancelamento do lançamento fiscal.[1] Essa postura representa um marco na integração entre o Poder Judiciário e o contencioso administrativo.

Com isso, reforça-se a noção de segurança jurídica ativa, em que o Estado reconhece e aplica, inclusive de ofício, a jurisprudência consolidada, evitando a repetição de litígios e a sobreposição de decisões contraditórias.

Racionalidade institucional

A legislação atual estabelece um conjunto de mecanismos voltados à racionalização do contencioso tributário. O art. 19 da Lei n. 10.522/2002, como mencionado, autoriza a PGFN a deixar de recorrer, contestar ou apresentar contrarrazões em matérias já pacificadas, além de permitir a desistência de recursos e a celebração de acordos processuais. O art. 19-A, por sua vez, impõe aos Auditores-Fiscais da Receita Federal a observância obrigatória dos precedentes e pareceres aprovados pela Procuradoria, inclusive em revisões de ofício e na restituição administrativa de tributos.

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Os §§ 9º a 13º do mesmo artigo ampliam essa racionalidade, permitindo a extensão da dispensa a temas análogos e a realização de mutirões entre o Poder Judiciário e a PGFN para uniformização de entendimentos e encerramento de processos desnecessários.

Também, o Decreto n. 70.235/1972 – que regulamenta o processo administrativo fiscal no âmbito federal – permite ao julgador administrativo afastar lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF, ou objeto de dispensa legal ou ato declaratório da PGFN, conforme exemplos abordados acima.[2]

Ratificando a eficácia do sistema de precedentes no plano federal, o Ministério da Fazenda incorporou ao Regimento Interno do Carf (RICARF) o art. 99 regra que obriga os seus julgadores a reproduzirem decisões de mérito transitadas em julgado proferidas pelo STF ou pelo STJ na sistemática de repercussão geral ou dos recursos repetitivos.

Essa nova lógica substitui a cultura da litigância pela da gestão estratégica de precedentes, em que o interesse público não se confunde com a mera vitória judicial, mas com a eficiência na aplicação do direito e a redução dos custos administrativos.

Ao evitar disputas repetitivas e reconhecer a autoridade das decisões dos tribunais superiores, a Administração Tributária preserva recursos públicos e fortalece a credibilidade institucional do Estado.

Paradigma cultural

Em termos práticos, a aplicação sistemática dos precedentes produz efeitos econômicos e sociais relevantes: diminui o estoque de processos, promove a previsibilidade fiscal e estimula o cumprimento espontâneo das obrigações tributárias pelos contribuintes, que passam a confiar na estabilidade das normas e das interpretações oficiais.

Mais do que um cumprimento formal de decisões judiciais, a atuação estatal baseada em precedentes dos Tribunais Superiores envolve uma mudança de paradigma cultural. O Estado passa a atuar como agente de pacificação social, não apenas como parte processual. A atuação cooperativa entre PGFN, Receita Federal e Carf demonstra que é possível construir um contencioso tributário moderno, racional e orientado pela boa-fé.

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[1] Vide: Acórdão n. 2202-011.480, Processo Administrativo n. 11020.720943/2015-25, Sessão de 10/09/2025.