Quantas comunidades e povos tradicionais existem no Cerrado? A pergunta, aparentemente simples, expõe um desafio histórico: organizar e disponibilizar informações sobre o bioma mais pressionado pela expansão agropecuária no Brasil.
Agora, uma pesquisa inédita conduzida entre 2020 e 2024 pelo Instituto Cerrados, em parceria com o IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), a Rede Cerrado e o ISPN (Instituto Sociedade População e Natureza), no âmbito da iniciativa interinstitucional Tô no Mapa, oferece uma contribuição crucial ao apresentar, pela primeira vez, uma visão ampla desse bioma, considerado a savana mais biodiversa do mundo.
O levantamento, disponibilizado na recém-lançada Plataforma Povoado, identificou 6.767 comunidades no Cerrado, das quais 2.641 se autodeclaram Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs), distribuídas em 480 municípios de 13 estados e pertencentes a 21 segmentos distintos.
Entre as mais de quatro mil comunidades rurais e camponesas registradas, estima-se que ao menos 2.353 também possam ser classificadas como PCTs, considerando que muitas dessas comunidades recorrem ao seu reconhecimento, a exemplo da agricultura familiar, para acesso às políticas públicas voltadas a essa categoria. Isso indica que o universo real dessas populações é significativamente maior do que aquele reconhecido oficialmente.
A nova plataforma cumpre papel estratégico no enfrentamento contra essa invisibilidade. Integrante do Tô no Mapa, que atua na defesa dos direitos territoriais com apoio técnico a entidades representativas de PCTs, a Povoado reúne e cruza dados públicos sobre povos e comunidades tradicionais do Cerrado, fortalecendo a visibilidade, o reconhecimento e a valorização desses grupos e de seus territórios.
É uma forma de a ciência contribuir para a proteção e a permanência desses povos em uma região simultaneamente rica em sociobiodiversidade e ameaçada pela expansão predatória de atividades como mineração e agropecuária. Ao centralizar informações dispersas em estudos acadêmicos, sites oficiais, levantamentos comunitários e outras fontes institucionais, a plataforma estabelece um marco para subsidiar políticas públicas, orientar pesquisas e apoiar processos de reivindicação territorial.
A relevância desse trabalho se acentua diante da fragilidade do reconhecimento estatal. A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), por exemplo, contabiliza apenas 119 Terras Indígenas demarcadas no Cerrado e outras 27 em estudo; o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), apenas 70 territórios quilombolas titulados.
Os demais segmentos de PCTs seguem praticamente invisíveis nas bases governamentais, apesar de contribuírem de modo decisivo para a conservação ambiental.
Estudos mostram que territórios ocupados por comunidades tradicionais apresentam taxas de desmatamento muito menores do que áreas vizinhas: cerca de 13% em territórios oficialmente reconhecidos e 10% em áreas não reconhecidas, enquanto o entorno pode chegar a 33% ou 44%, dependendo da escala analisada. Em outras palavras, mesmo sem respaldo legal, esses grupos exercem proteção mais eficaz do que muitos mecanismos formais existentes.
Esse contraste se torna ainda mais dramático no contexto atual. O Cerrado foi, pelo segundo ano consecutivo, o bioma mais desmatado do Brasil. Em 2024, segundo a rede MapBiomas, foram destruídos 652 mil hectares, 99% deles ligados à agropecuária, com pelo menos 71% apresentando indícios de ilegalidade. Carne e soja seguem impulsionando essa expansão, com grande parte voltada ao mercado externo.
A devastação avança sobre um território que abriga metade das nascentes do país, alimenta 8 das 12 grandes bacias hidrográficas brasileiras e já perdeu mais de 50% de sua vegetação nativa. Apenas 11,6% do bioma estão oficialmente protegidos, enquanto a legislação permite suprimir até 80% da vegetação em propriedades privadas do bioma. Esse cenário reforça a percepção crescente entre pesquisadores de que o Cerrado se tornou um bioma de sacrifício.
A invisibilidade dos povos e comunidades tradicionais é parte central desse processo. Sem reconhecimento territorial, esses grupos se tornam mais vulneráveis à grilagem, expulsão e violência. Apenas em 2024, a Comissão Pastoral da Terra registrou 1.768 conflitos fundiários no país, 95% deles com violência direta, muitos concentrados em áreas de Cerrado onde comunidades tradicionais carecem de proteção jurídica.
Entre 2003 e 2018, 40,5% dos conflitos por terra registrados no Brasil ocorreram no bioma, e, entre 2011 e 2020, houve uma média de 13 conflitos por dia. Esses números evidenciam não apenas a intensidade das disputas territoriais, mas também uma decisão política de manter essas comunidades fora das estatísticas estatais.
O reconhecimento formal dos PCTs, embora previsto no Decreto 6.040/2007, nunca foi acompanhado da criação de instrumentos institucionais para organizar, qualificar e integrar dados sobre esses grupos. A produção de conhecimento acabou ficando concentrada em universidades, organizações da sociedade civil e iniciativas como a Plataforma Povoado, que reuniu 2.608 registros provenientes de sites oficiais, 1.144 de artigos científicos e 1.888 de trabalhos de conclusão de curso, evidenciando o papel essencial da academia e da sociedade civil na produção de informações que o Estado historicamente negligenciou.
Diante desse panorama, reconhecer e proteger os territórios tradicionais do Cerrado não é apenas uma reparação histórica, mas uma medida urgente e estratégica para conter o desmatamento, garantir a segurança hídrica, preservar modos de vida que mantêm o bioma em equilíbrio e cumprir as metas climáticas assumidas pelo Brasil.
As comunidades tradicionais não são entraves ao desenvolvimento; ao contrário, são agentes fundamentais para que ele seja sustentável. O futuro do Cerrado passa necessariamente pela visibilidade, pelo reconhecimento e pelo fortalecimento dos territórios tradicionais. O bioma não pode continuar sendo tratado como zona de sacrifício enquanto aqueles que historicamente o protegem permanecem invisíveis aos olhos do Estado.