A ‘trava’ de 30% nas hipóteses de extinção e o Tema 1401 da repercussão geral

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A possibilidade de compensação de prejuízos fiscais remonta à década de 1940. Contudo, foi a partir de 1995 que esse tema passou a ser objeto de amplo contencioso, com a edição das Leis 8.981 e 9.065.

A primeira instituiu, a partir de janeiro de 1995, o percentual máximo de 30% para a dedução de perdas sobre o lucro real. Passou também a estabelecer, para determinação da CSLL, que a base de cálculo negativa apurada em período anterior poderia ser deduzida em no máximo 30%. A Lei 9.065/95, por sua vez, manteve a restrição do percentual máximo de 30% a ser compensado em ambas as hipóteses.

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Há 30 anos, portanto, são frequentes os questionamentos acerca da constitucionalidade do estabelecimento de uma “trava” para a compensação de prejuízos fiscais de IRPJ e base de cálculo negativa da CSLL, tema que não tardou a ser examinado pelo Supremo Tribunal Federal, mas que ainda não foi definitivamente resolvido.

Isso porque, ao limitar a compensação do prejuízo fiscal do IRPJ e da base de cálculo negativa da CSLL a 30%, o legislador ordinário não objetivava vedar o exercício do direito à dedução, mas apenas diferi-lo com a imposição de um limite quantitativo, como medida protetora do fluxo da arrecadação.

É o que se verifica nas Exposições de Motivos das Medidas Provisórias 812/1994 e 998/95, que deram origem às referidas leis federais. Ambas esclarecem que a intenção do legislador com a criação da limitação de 30% era protrair a possibilidade de compensação no tempo – mas nunca a impedir – a fim de não impactar a uma só vez as contas públicas.

É forçoso, assim, reconhecer que a limitação prevista em lei não deveria ser aplicada nas hipóteses de extinção de pessoas jurídicas, mas apenas nos casos em que a empresa continua a desenvolver suas atividades e tem a possibilidade de compensar os prejuízos de forma parcelada.

A finalidade da lei foi reiterada pelo STF em duas oportunidades. Em 2009, o pleno finalizou a análise do RE 344.994, sob relatoria do ministro Marco Aurélio. Na ocasião, a corte reconheceu a constitucionalidade da “trava” de 30% nos casos de continuidade da atividade empresária, uma vez que a compensação de prejuízos fiscais e base de cálculo negativa (i) se trata de benefício fiscal (ii) diferido no tempo.

Por sua vez, quando da análise do RE 591.340 (paradigma do Tema 117 da repercussão geral), o tribunal expressamente excetuou de sua análise as hipóteses de extinção da pessoa jurídica. O ministro Marco Aurélio, relator do paradigma, ao iniciar seu voto, delimitou o tema que estava sendo julgado. Além do relator, o ministro Alexandre de Moraes, redator para o acórdão, e os ministros Edson Fachin e Luiz Fux restringiram a discussão para dela excluir as hipóteses de extinção.

Considerando o distinguishing entre o que foi decidido no RE 344.994 e no RE 591.340 e as hipóteses de extinção da pessoa jurídica, a análise da constitucionalidade da “trava” está próxima de ganhar novo e, espera-se, derradeiro capítulo. Justamente com base na distinção entre as situações de manutenção das atividades e de extinção da empresa, o ministro André Mendonça submeteu ao plenário virtual, de 23/05 a 30/05, a afetação do RE 1.425.640, para que o STF examine a “constitucionalidade da limitação do direito de compensação de prejuízos fiscais do IRPJ e da base de cálculo negativa da CSLL na hipótese de extinção da pessoa jurídica.” (Tema 1401).

É necessário, respeitosamente, reconhecer o grande acerto da iniciativa do ministro André Mendonça, sendo imprescindível, em prol da segurança jurídica e da isonomia, a afetação de um paradigma específico em que se analise definitivamente a constitucionalidade da “trava” nas hipóteses de extinção.

Resumidamente, em primeiro lugar, a questão é eminentemente constitucional – como era a análise da constitucionalidade da trava em hipóteses de continuidade da pessoa jurídica –, pois devem ser analisadas afrontas ao conceito de renda e lucro, à capacidade contributiva, ao não-confisco e à isonomia.

Em segundo lugar, a repercussão geral é inconteste, pois o recurso veicula controvérsia de relevância ímpar, que possui ainda mais sensibilidade do que aquela veiculada no Tema 117. Em terceiro lugar, compete à corte, por meio da repercussão geral, a uniformização da jurisprudência constitucional-tributária sobre o tema, direcionando de forma uníssona e vinculante os tribunais e a administração.

Em relação a esse último ponto, em que pese o STF ter firmado precedentes em que considerou apenas o contexto da manutenção das atividades das pessoas jurídicas, as autoridades administrativas e as instâncias judiciais têm apresentado oscilação jurisprudencial, ora no sentido de que a limitação de 30% é aplicável de forma equivalente tanto às hipóteses de continuidade das pessoas jurídicas quanto às de extinção da empresa, ora pelo afastamento da aplicação da “trava” nas hipóteses de extinção.

Especificamente no âmbito do Carf, há instabilidade em relação ao tema desde os anos 2000. Desse modo, diversos contribuintes já tiveram créditos tributários extintos pelo conselho e outros precisam discutir as autuações no Judiciário.

Sobre essa instabilidade, escreveu o professor Ricardo Mariz de Oliveira:

“Na primeira fase, após divergência entre duas câmaras do 1º Conselho de Contribuintes, a Câmara Superior de Recursos Fiscais posicionou-se pela inaplicabilidade da chamada ‘trava’ nas extinções de pessoas jurídicas, primeiramente através de decisão proferida por 14 votos contra dois, e depois pela unanimidade dos seus 16 conselheiros (Acórdãos ns. CSRF/01-04258 e CSRF/01-05100).

Em virtude disso, numa segunda fase, pacificou-se a jurisprudência nas câmaras ordinárias do 1º Conselho, em inúmeros casos julgados ao longo dos anos.

A terceira fase iniciou-se em outubro de 2009, quando a Câmara Superior de Recursos Fiscais abruptamente decidiu em contrário à jurisprudência estratificada, por voto de desempate do conselheiro que naquela sessão ocupou a presidência na ausência do seu titular (Acórdão 9101-00401).

Esta fase perdurou com incertezas nas câmaras ordinárias do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, à espera de um novo pronunciamento da Câmara Superior de Recursos Fiscais, o que veio a ocorrer somente em outubro de 2013, novamente por voto de desempate em favor da aplicabilidade da trava num caso de incorporação (Acórdão 9101-001760)”.[1]

Nos últimos anos, especialmente a partir de 2021, as decisões do Conselho voltaram a oscilar: decisões de setembro de 2021, julho e outubro de 2022 afastaram a trava nos casos de extinção[2].

Por outro lado, em fevereiro de 2023, março e agosto de 2024, o órgão do Ministério da Fazenda proferiu acórdãos que mantiveram a limitação da compensação de prejuízos em casos que veiculavam a mesma questão[3]. Ressalta-se que muitas dessas últimas decisões foram tomadas por voto de qualidade, o que demonstra a divergência interna no âmbito do conselho.

Tal situação causa grave afronta à isonomia e à segurança jurídica não só aos contribuintes, mas ao próprio Estado, do ponto de vista jurídico e de instabilidade orçamentária, o que demonstra a inequívoca relevância do tema.

A ausência de um precedente constitucional vinculante, situação que pode ser alterada em breve, não apenas deixa uma enorme e perigosa brecha para que o Carf e o Judiciário decidam de forma contraditória tão relevante questão, mas também que produzam intensas injustiças equiparando duas situações completamente diferentes do ponto de vista jurídico e econômico.

Mais preocupante ainda é imaginar que o STF poderia negar a repercussão geral do RE 1.425.640 e se furtar a exercer sua função de pacificação de controvérsias – sobretudo em sede de controle de constitucionalidade –, e deixar de conferir soluções jurídicas de modo uniforme, eficiente e isonômico, “delegando” jurisdição ao Superior Tribunal de Justiça.

Assim, reitera-se o enorme acerto do voto proferido pelo ministro André Mendonça, que diagnosticou possível afronta à igualdade e à isonomia tributária no tratamento idêntico a situações díspares – manutenção da empresa e sua extinção – e decidiu pela afetação do Tema 1401. Espera-se que, ao menos, outros cinco Ministros enxerguem a matéria sob a mesma ótica.


[1] Mariz de Oliveira, R. (2014). Limite à Compensação de Prejuízos Fiscais na Extinção de Pessoa Jurídica: um Caso para Solução através de Redução Teleológica (ou notando a Existência de Silêncio Eloquente). Revista Direito Tributário Atual, (31), 146–161. Recuperado de https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/1493.

[2] Informações disponíveis em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/carf-afasta-trava-de-30-em-caso-envolvendo-extincao-de-empresa-07092021https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/carf-afasta-trava-de-30-em-caso-de-empresa-extinta-por-incorporacao-18072022; e https://www.jota.info/tributos/apos-desempate-carf-afasta-trava-de-30-em-caso-de-empresa-extinta.

[3] Informações disponíveis em: https://jota.info/tributos-e-empresas/tributario/por-voto-de-qualidade-carf-mantem-trava-de-30-06022023; https://www.jota.info/tributos/por-voto-de-qualidade-carf-nao-conhece-recurso-e-trava-de-30-e-mantida; e https://www.jota.info/tributos/carf-mantem-trava-de-30-em-caso-de-empresa-extinta-por-incorporacao.