No final de 2023, a 5ª Turma do STJ decidiu caso envolvendo agente penitenciário que repassava os contatos de presos desassistidos a corréu advogado. Se firmado contrato de patrocínio, o agente solicitava parte dos valores recebidos pelo causídico, a título de contraprestação pela intermediação realizada.
Entendeu a 5ª Turma que, na forma simples do crime de corrupção passiva (art. 317, caput, do CP), o ato de ofício “deve ser, ao menos, visado pelo agente corruptor, ainda que potencial ou futuramente”. Ocorre que o ato praticado na situação concreta (repasse de contatos de presos desassistidos) não consistiria em ato de ofício, “pois absolutamente alheio às atribuições de qualquer funcionário público”[1].
Para chegar a essa conclusão, o colegiado buscou fazer uma distinção em relação a precedente da 6ª Turma (REsp 1.745.410, caso dos aeroportuários)[2], assentado na jurisprudência da Corte[3]. No precedente, entendeu-se configurado o crime de corrupção passiva quanto à aceitação de promessa de vantagem indevida por dois aeroportuários, a fim de que recebessem e escoltassem estrangeiro até que fosse possível a passagem furtiva pelo serviço de imigração.
A relatora fundamentou que, na corrupção passiva, não é necessário que as ações ou omissões indevidas estejam dentro das atribuições formais do funcionário público; basta que se trate de condutas que, em razão da função pública, materialmente impliquem “alguma forma de facilitação da prática da conduta almejada”. O raciocínio ainda partiu da premissa de que a expressão “em razão dela [da função]”, presente no tipo básico da corrupção passiva (art. 317, caput, do CP), não é equiparável ao ato de ofício previsto na forma simples da corrupção ativa (art. 333, caput, do CP). Assim, a aceitação da promessa de vantagem indevida, na corrupção passiva, não pressupõe um nexo causal com ato de ofício praticável pelo funcionário público, mas sim com a “eventual facilidade ou suscetibilidade usufruível em razão da função pública exercida pelo agente”.
Já no AgRg no REsp 2014406 (caso do agente penitenciário), a 5ª Turma reputou não configurado o crime de corrupção passiva porque o repasse de contatos de presos desassistidos a corréu advogado, como dito, seria um ato alheio “às atribuições de qualquer funcionário público”. Em tentativa de distinção com o precedente da 6ª Turma, registrou-se: “a presente hipótese não se esgota na discussão acerca da desnecessidade de o ato de ofício incluir-se dentro da competência funcional específica do funcionário público, mas abrange a total desconexão entre o ato em questão e a função de qualquer agente público. Atípica, pois, a conduta”.
Apesar do esforço argumentativo, indaga-se: seria a extraordinariedade ou a desconexão do ato com as atribuições de qualquer funcionário público um critério apto a justificar a distinção com a norma do precedente?
A ratio decidendi do caso dos aeroportuários é clara: o nexo causal entre solicitar, oferecer ou aceitar promessa de vantagem indevida deve se dar com a “eventual facilidade ou suscetibilidade usufruível em razão da função pública exercida pelo agente”. Aplicando-se essa diretriz à hipótese do acesso facilitado a contatos de presos desassistidos por agente penitenciário, a conclusão inarredável é pela configuração do crime de corrupção passiva.
Isso porque, em ambas as situações (aeroportuários e agente penitenciário), o pacto espúrio ocorre em razão do exercício da função – ou, mais precisamente, em razão de uma facilidade usufruível mediante o exercício da função[4]. Hipótese distinta seria a pactuação envolvendo atividade extraordinária de funcionário público completamente alheia ao exercício da sua função pública. Nesse caso, sim, a mera titularidade da função pública não seria apta a configurar a corrupção passiva[5].
Se a distinção não era válida, é preciso analisar se, na realidade, ocorreu a (tentativa de) superação do precedente da 6ª Turma, com a reintrodução do ato de ofício como elemento determinante para a caracterização do crime de corrupção passiva. Essa é uma interpretação plausível, especialmente quando se atenta para a ênfase dada pela 5ª Turma ao ato de ofício como “objeto central da transação mercantil entre as partes”. Em contraposição ao enfoque na comercialização da função pública, prevalecente no precedente da 6ª Turma, frisou-se que o ato de ofício “deve ser, ao menos, visado, ser posto como fim das condutas do agente corrompido e do agente corruptor”.
Ocorre que a decisão no caso envolvendo os aeroportuários é irretocável no ponto em que destaca a desnecessidade de enquadramento da conduta indevida nas atribuições formais do funcionário público. Nesse entendimento, que é amparado pela jurisprudência do STF[6], o ato de ofício assume uma conotação funcional, ou seja, é atrelado à função pública. O essencial para a consumação do delito é que o funcionário, em contrapartida a vantagens indevidas, proponha-se a praticar atos – quaisquer que sejam – materialmente relacionados à função pública.
O problema associado ao precedente da 6ª Turma, a justificar sua parcial superação, é outro. O referencial restritivo do ato de ofício foi vencido em relação ao crime de corrupção passiva, mas não para a corrupção ativa, em virtude da literalidade do art. 333, caput, do CP. Dessa forma, estabeleceram-se balizas interpretativas discrepantes para crimes que são praticados no contexto de um mesmo pacto espúrio.
Essa diretriz deve ser questionada pelo seu anacronismo[7]. As noções restritivas que foram inicialmente esboçadas quanto ao ato de ofício como elemento típico dos crimes de corrupção passiva e ativa tinham em vista as práticas corruptas no nível burocrático da administração pública. Com o passar do tempo, especialmente a partir do julgamento do mensalão pelo STF (AP 470/MG) e dos escândalos da alta corrupção que lhe sucederam, ficou suficientemente claro que: a) os funcionários públicos podem praticar uma série de atos como desdobramento das suas funções, não inseridos em qualquer rol de atribuições previamente delimitado; b) esses atos materiais ao alcance dos funcionários públicos podem ser genericamente empenhados em troca de uma vantagem indevida, sem qualquer espécie de prévia individualização. Negar a configuração típica da corrupção, nessas situações, equivaleria a interpretar restritivamente as normas a partir do elemento do ato de ofício (cuja textualidade sequer é unívoca) em prejuízo dos seus fins (teleologia) e sua posição no contexto normativo (sistematicidade).
É necessário, portanto, deslocar a ênfase ainda dada por parte da doutrina e da jurisprudência à figura do ato de ofício para a do pacto de injusto, que é comum aos delitos de corrupção passiva e ativa. O pacto tem por objeto a venalidade do exercício da função pública, ou seja, a combinação entre determinada vantagem indevida e a possibilidade de contraprestação, efetiva ou potencial, pelo funcionário público.
Com o referencial da venalidade do exercício da função pública (ou pacto de injusto), as expressões “função pública” e “ato de ofício” – constantes, respectivamente, dos tipos simples da corrupção passiva e ativa – devem ser interpretadas sistematicamente. Em ambos os casos, o fundamental é identificar a existência do pacto de injusto e o seu conteúdo. Em termos mais simples, deve-se verificar se houve a negociação do exercício da função em troca de uma vantagem indevida e, em caso afirmativo, em que termos se deu o ajuste.
Nessa perspectiva, tanto a função pública quanto o ato de ofício assumem um papel primordialmente descritivo da combinação espúria efetivamente feita entre corrupto e corruptor. Havendo a mercancia de um ato de ofício específico (entendido, na linha do precedente da 6ª Turma acima analisado, como um ato materialmente vinculado ao exercício da função pública), sua descrição será evidentemente necessária à imputação; se, diversamente, o pacto for mais amplo e envolver a compra da função pública como um todo, ou mesmo de uma “boa relação” entre particular e funcionário, a figura do ato de ofício torna-se secundária. Neste último caso, a descrição do próprio pacto e das vantagens oferecidas e eventualmente pagas periodicamente ao agente corrupto, por sua maior amplitude e gravidade, se sobrepõe ao ato de ofício, que sequer pode ter sido empenhado de forma individualizada.
Com base no exposto, e voltando à decisão da 5ª Turma do STJ no AgRg no REsp 2014406, propõem-se as seguintes conclusões: a) a circunstância de o ato praticado ou empenhado em troca de vantagem indevida ser extraordinário (ou desconexo com as atribuições formais de qualquer funcionário público) não é critério apto a justificar a distinção com a norma do precedente da 6ª Turma no REsp 1.745.410 (caso dos aeroportuários), quando verificado que foi pactuada uma facilidade usufruível mediante o exercício da função; b) o novo julgado também não tem força persuasiva para superar a ratio decidendi do referido precedente, quanto ao crime de corrupção passiva; c) é cabível, de outro lado, a futura superação da ratio decidendi com relação ao crime de corrupção ativa, na medida em que a venalidade do exercício da função pública (ou pacto de injusto) deve se sobrepor como vetor interpretativo nos delitos de corrupção, em uma perspectiva sistêmica e teleológica.
[1] STJ, 5ª T., AgRg no REsp 2014406, rel. Min. Joel Ilan Paciornik, j. em 25.09.2023.
[2] STJ, 6ª T., REsp 1.745.410, rel. p/acórdão Min. Laurita Vaz, j. em 02.10.2018.
[3] STJ, 5ª T., AgRg no AREsp 1.650.032/RJ, rel. Min. Joel Ilan Paciornik, j. em 25.08.2020; STJ, 6ª T., AgRg no AREsp 2010695/DF, rel. Min. Olindo Menezes, j. em 07.06.2022.
[4] Relembre-se que na forma simples do tipo, diferentemente das figuras majorada e privilegiada previstas nos §§ 1 e 2º do mesmo dispositivo, não é necessária infração a dever funcional.
[5] O exemplo clássico dessa hipótese consiste na celebração de contrato de aluguel de imóvel em que o locador, atento somente à posição de funcionário público do locatário, concede a este uma preferência ou desconto nos aluguéis.
[6] STF, 2ª Turma, AP 996, rel. Min. Edson Fachin, j. em 29.05.2018; STF, 2ª Turma, AP 1.019, rel. Min. Edson Fachin, j. em 24.08.2020; STF, 2ª Turma, AP 1.015, rel. Min. Edson Fachin, j. em 10.11.2020.
[7] Os argumentos a seguir foram expostos com maior profundidade em: CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. A venalidade do exercício da função pública como critério interpretativo dos crimes de corrupção passiva e ativa. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 200. ano 32. p. 55-85. São Paulo: Ed. RT, jan./fev. 2024.