A coluna de hoje tem por objeto e inspiração o excelente livro de Michael Sandel A Tirania do Mérito: O que aconteceu com o bem comum?[1] e os diversos aportes que a obra oferece para reflexões mais aprofundadas em torno das relações entre economia, política e direito.
Um dos pontos altos do livro é precisamente o de questionar o próprio modelo de meritocracia, colocando em xeque uma premissa que acabou se tornando senso comum: o de que o mérito deve pautar as conquistas e a remuneração das pessoas, razão pela qual tudo que precisamos fazer é assegurar igualdade de oportunidades, especialmente no que se refere à educação, para que cada um tenha o direito de colher as recompensas pelos seus talentos individuais.
Verdade seja dita que a ideia de meritocracia, desde que corretamente entendida e aplicada, já seria capaz de resolver parte dos problemas recentes sobre igualdade. Afinal, ela nos provoca a pensar em várias das distinções pautadas por importantes liberais, tais como Rawls e Dworkin, sobre a essência do próprio mérito.
É a partir de tais reflexões que se pode chegar à conclusão de que nascer em uma família rica não poderia nem deveria ser o principal vetor do destino econômico de uma pessoa, já que tal circunstância não pode ser considerada mérito, mas sim algo arbitrário do ponto de vista moral. Da mesma maneira, poder-se-ia chegar à conclusão de que, em países muito desiguais, a meritocracia será sempre uma falácia enquanto não se assegurar às pessoas uma igualdade mínima de oportunidades.
Entretanto, tais conclusões, embora importantes, partem da premissa de que a meritocracia, como ideal, é algo correto e que deve ser buscado inclusive por meio de políticas públicas de inclusão e de facilitação de acesso a bens primários – para nos utilizarmos da terminologia de Rawls – incluindo aí a educação.
O ponto de Sandel é que a própria meritocracia, como ideal, pode não ser necessariamente boa, ainda mais quando o mérito acaba sendo vinculado à lógica de mercado e, consequentemente, à ascensão e ao dinheiro. Uma das principais críticas do autor, portanto, é a métrica que faz da remuneração o critério supremo para dividir a sociedade entre os ganhadores – os que têm mérito – e os perdedores – os que não têm mérito.
É esse tipo de raciocínio que permite a conclusão de que, se uma pessoa é bem sucedida é porque tem mérito e, portanto, deve fazer jus a se beneficiar dos resultados do seu talento. De forma contrária, se uma pessoa fracassa ou é deixada para trás, é porque não tem mérito e, portanto, também deve sofrer as consequências de tal circunstância, mesmo quando estas transcendem os resultados materiais e se traduzem igualmente na ausência de reconhecimento social e na humilhação.
Essa forma de ver o mérito exclusivamente pelas lentes do economicismo neoliberal, além de distorcer a própria noção de mérito, ignora que mesmo o sucesso material de muitas pessoas não decorre exclusivamente dos seus talentos, mas igualmente de fatores como acaso, conexões sociais familiares e tantas outras variáveis que não poderiam ser consideradas propriamente como mérito. Sob vários aspectos, a lógica do self made man ignora a própria importância da vida social e da cultura na construção de nossas identidades e de nossas habilidades.
Acresce que nem toda ascensão social e material decorre propriamente do mérito. Para além daqueles cujo “mérito” foi simplesmente o de serem herdeiros, é importante lembrar quantas fortunas foram construídas a partir de fraudes, corrupções, favorecimentos indevidos do Poder Público, práticas desleais, abuso de posição dominante, dentre outras. Isso mostra que a vinculação do mérito aos critérios de mercado pode ser bastante enganosa.
Entretanto, a reflexão de Sandel estressa ainda mais o argumento do mérito, ao nos propor a seguinte reflexão: merecemos realmente nossos talentos? Qual é o mérito de nascermos inteligentes ou com determinadas aptidões? Se vários dos nossos dons ou talentos são inatos e, consequentemente, não são fruto de nosso esforço ou de nosso trabalho, qual é o nosso mérito em tê-los?
Como se pode observar, o argumento de Sandel nos provoca a pensar se a própria meritocracia é justificável e, ainda que o seja, que critérios podem ou devem ser considerados como meritórios. Mais do que isso, o autor realça que, da forma como tem sido colocada em prática nas economias de mercado, a meritocracia tem ignorado a dimensão social das pessoas e reduzido o mérito a um parâmetro econômico e mensurável exclusivamente pelo mercado.
Tal cenário, segundo Sandel, é extremamente preocupante do ponto de vista democrático, pois estimula a polarização e compromete a virtude cívica. Mais do que isso, deixa de atribuir o devido reconhecimento a profissões que, a exemplo dos enfermeiros e professores, são importantíssimas mas são mal remuneradas ou não recebem o devido reconhecimento pelo mercado.
Para Sandel, a convergência do mérito com as ideias liberais levou a um ambiente cívico tóxico, que é mantido por meio de políticas públicas igualmente tóxicas. Daí por que, no seu entender, não basta aperfeiçoar a lógica do merecimento; o problema é mais profundo e exige a mudança de uma lógica que divide a sociedade entre vencedores e perdedores, permitindo que estes últimos vivam em estado de apatia e humilhação.
Pelas mesmas razões, reduzir desigualdade, assegurar mobilidade social e ampliar o acesso à educação são medidas que certamente ajudam, mas não resolvem o problema, pois este tem como raiz principal a falta de reconhecimento social e econômico de determinados trabalhos.
Dessa maneira, a questão não é apenas permitir que todos possam ter um diploma superior, mas igualmente estender reconhecimento social àqueles que não têm esse diploma. A cisão absoluta entre os que sabem e o que não sabem não é desejável do ponto de vista da virtude cívica, razão pela qual o acesso à educação é insuficiente para contornar os efeitos de tal visão de sociedade.
Na verdade, Sandel faz uma grande crítica a essa concepção, mostrando como as próprias credenciais universitárias acabam virando verdadeiras armas em uma competição desenfreada que é pautada apenas pela lógica de mercado e que essa obsessão pela educação acaba gerando um preconceito contra quem não tem as devidas credenciais que é sintoma da arrogância meritocrática.
Tal aspecto é particularmente importante quando se observa a grande base de eleitores norte-americana que não têm educação superior e nem por isso podem deixar de ser representados democraticamente. Estatísticas mostram, aliás, que a remuneração real dessas pessoas está estagnada há meio século. É inequívoco que muitas dessas preocupações também se aplicam a países como o Brasil.
Por todas essas razões, a solução proposta por Sandel é a reconstrução da dignidade do trabalho e o reconhecimento das pessoas independentemente de terem ou não diploma, do seu grau de educação e da remuneração que recebem.
Para o autor, é a ausência desse tipo de preocupação que vem motivando a raiva das pessoas, especialmente das menos qualificadas e sem diploma superior, contra as elites, o que está diretamente associado ao avanço do autoritarismo no mundo. De fato, líderes populistas têm sido capazes de canalizar a raiva e angústia dos que “não têm mérito” e são deixados para trás, estimulando um sentimento antissistema que, ainda que seja irracional por diversos aspectos, vem fortalecendo esse tipo de liderança.
Outra dificuldade é que esse tipo de visão está conectada a uma visão cada vez mais tecnicista da política, que acaba sendo delegada para técnicos, em razão dos seus respectivos “méritos”. Daí a referência de Sandel ao “governo por diploma”. Aliás, sob diversos aspectos, o autor nos mostra como meritocracia e tecnocracia são fenômenos convergentes e que se retroalimentam, no sentido de reduzir quem participa das discussões públicas – somente quem têm mérito e diploma – e o que pode ser discutido.
Com efeito, para Sandel, ainda que decisões políticas dependam de questões técnicas, não podem ser reduzidas a estas. É fundamental que se preserve o espaço da política, que se traduz na necessidade de deliberações inclusivas sobre bem comum, valores, igualdade e justiça. Daí por que o tecnicismo, que não raro está associado a abordagens gerenciais e economicistas, corrói a democracia, afasta do debate público uma parcela significativa de cidadãos e deixa vários espaços vazios que acabam sendo preenchidos por extremismos políticos ou religiosos.
Dessa maneira, a obra de Sandel trata de vários dos maiores problemas pelos quais as democracias ocidentais vêm passando, muitos dos quais têm a ver com as disfuncionalidades da lógica de mercado, inclusive na parte em que reduz indevidamente o mérito à riqueza e à remuneração.
Todavia, o autor nos propõe uma reflexão ainda mais profunda, que não se restringe a aperfeiçoar a meritocracia por meio da igualdade de oportunidades e do acesso à educação. Para ele, é preciso pensar igualmente nos pressupostos da democracia, que pode não depender da perfeita igualdade, mas certamente exige que pessoas diferentes possam se encontrar para discutir sobre o bem comum em um contexto em que todas sejam valorizadas, respeitadas e reconhecidas.
Sem isso, não há nem dignidade do trabalho nem a coesão social mínima de que a democracia depende. Por isso, cabe a cada um de nós refletir se e em que medida a meritocracia – seja em sua visão ideal, seja nas visões economicistas distorcidas com que vem sendo aplicada na prática – não vem se tornando mais um obstáculo do que um pressuposto para a realização dos ideais democráticos.
[1] SANDEL, Michael. A tirania do mérito. O que aconteceu com o bem comum? Tradução de Bhuvi Libanio. Rio: Civilização Brasileira, 2020.