A sedução da política sobre a técnica na aprovação do PL 1087

  • Categoria do post:JOTA

A aprovação apressada do PL 1087/2025 na Câmara dos Deputados revela mais sobre o apelo popular da medida do que sobre a real disposição de enfrentar os dilemas que embasam sua exposição de motivos.

Em menos de seis meses, uma proposta que altera de forma significativa o Imposto de Renda consegue aprovação no Congresso, sustentada por uma narrativa simples e sedutora: aliviar quem ganha até R$ 5.000 mensais e tributar dividendos de milionários. A votação unânime mostra que o discurso é persuasivo. A execução, contudo, levanta sérias dúvidas.

Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF

O projeto se estrutura em três pilares: primeiro, a isenção total até R$ 5.000 mensais, que, segundo o próprio Executivo, custará R$ 83,24 bilhões em arrecadação entre 2026 e 2028. Depois, um desconto decrescente para rendas entre R$ 5.000 e R$ 7.350, voltado a alcançar parte da classe média; e, como contrapartida, a criação do chamado Imposto de Renda da Pessoa Física Mínimo (IRPFM), aplicável a rendas anuais acima de R$ 600 mil, vendido como mecanismo capaz de compensar integralmente a perda arrecadatória. A construção parece equilibrada, mas esconde fragilidades que comprometem sua coerência.

À primeira vista, quem ousaria se opor a cobrar dos ricos sua “justa parte” para aliviar quem pouco ganha? Do ponto de vista político, tacada de mestre do governo federal, que pressionou o aceite do Congresso Nacional com uma pauta social difícil de contestar, às vésperas de ano eleitoral.

O problema é que, para concretizar uma pretensão açodada e que visa apenas o hoje, o Projeto de Lei incorre em falhas e complexidades técnicas profundas. Movido pelo viés eleitoral, o governo federal parece esquecer que o sistema tributário é um organismo interdependente: cada mudança gera efeitos em cadeia.

Nesse contexto, merece destaque a inclusão dos dividendos como renda tributável, principal medida eleita pelo Poder Executivo para compensar a perda de arrecadação decorrente da isenção ofertada.

A experiência global mostra que, na atualidade, o Brasil anda na contramão do tema: a Irlanda tributa dividendos em até 51%; a Coreia do Sul, 44%; a Dinamarca, 42%. Mesmo os Estados Unidos, esse bastião do capitalismo liberal tão admirado, cobram até 29% sobre dividendos distribuídos.

Entrar na rota internacional era plausível, quiçá necessário, não fosse a forma e o contexto eleitos.

Tal tributação, nos moldes propostos, ignora uma diferença elementar: Os dividendos oriundos de sociedades de capital refletem, em regra, remuneração do próprio capital; já os “lucros” distribuídos por sociedades de pessoas (escritórios de advocacia, clínicas etc.) são, em larga medida, a tradução do trabalho pessoal dos sócios via pessoa jurídica. Tratar ambos de modo idêntico afronta a isonomia, pois equipara situações desiguais e cria risco de dupla tributação econômica sobre a mesma riqueza: primeiro na pessoa jurídica, depois na pessoa física, sem nova manifestação de capacidade contributiva.

É dizer: a tributação de dividendos só funciona de maneira eficiente quando há coordenação entre a carga incidente sobre a empresa e sobre a pessoa física. O raciocínio é simples: o lucro gerado pela pessoa jurídica já sofreu tributação no nível corporativo. Se, ao ser distribuído ao sócio, for novamente taxado de forma integral, cria-se uma dupla incidência que distorce o sistema. O equilíbrio está em ajustar as alíquotas, de modo que a soma final não desestimule o investimento nem a distribuição de resultados.

O PL 1087, portanto, rompe esse princípio de integração. Ao manter a tributação corporativa nos níveis atuais e ainda impor um novo encargo sobre a renda distribuída, o projeto gera um efeito de sobreposição tributária. Na prática, o capital produtivo brasileiro (aquele investido em empresas que geram empregos, inovação e crescimento econômico) passa a enfrentar um custo de financiamento mais elevado do que o verificado em muitas economias desenvolvidas.

E não é só. Quando o sentimento é de sufocamento fiscal (geralmente decorrente de aumento da carga sem planejamento estrutural), a criatividade elisiva empresarial é posta à prova, multiplicando-se as Distribuições Disfarçadas de Lucro, empréstimos simulados, consultorias fictícias e contratos inflados: operações que abarrotam a Receita Federal de fiscalizações, inflando o contencioso sobre a matéria e reduzindo a eficiência do sistema.

No fim, e a par de muitas outras implicações e críticas de ordem material (v.g. ofensa à progressividade, segurança jurídica e até mesmo à livre concorrência) o PL 1087 simboliza a sobreposição da narrativa política sobre a técnica tributária. A rogativa “Robin Hoodiana” é óbvia: tributa-se os ricos para desonerar os pobres.

Receba de graça todas as sextas-feiras um resumo da semana tributária no seu email

No entanto, um sistema tão complexo quanto o tributário exige mais do que slogans. Uma verdadeira reforma deveria integrar rendimentos do trabalho e do capital em uma base progressiva comum, proteger de fato o mínimo existencial das famílias e criar um modelo sustentável, capaz de financiar o Estado sem comprometer a economia.

Enquanto práticas populistas seguirem ditando as prioridades sobre a técnica, acumularemos reformas que agravam as distorções que dizem corrigir. Entre a intenção redistributiva e sua realização efetiva, abre-se um abismo preenchido por elisões, evasões e frustrações. O Brasil precisa de reestruturação técnica, não de promessas embaladas em discursos eleitorais.