A retomada do julgamento da ADPF 403 e o ‘fator Elon Musk’

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Não há dúvidas. Ainda que Elon Musk não venha, de fato, a descumprir decisões judiciais e o Supremo Tribunal Federal não precise suspender o funcionamento do X no Brasil, a queda de braços entre o magnata e o ministro Alexandre de Moraes já serviu para alguma coisa: resgatou a polêmica discussão em torno da constitucionalidade das ordens judiciais de bloqueios de aplicativos, e o STF retoma, na próxima sexta-feira (19), o julgamento da ADPF 403, que tende a colocar um ponto (quase) final no assunto.

É preciso dar um passo atrás para entender o que nos trouxe até esse momento. Em 2020, no auge do isolamento da pandemia da Covid-19, o STF começou o julgamento conjunto da ADIn 5527 e da ADPF 403, que discutiam, dentre outras questões, a possibilidade de determinação, por decisão judicial, da quebra de criptografia de ponta-a-ponta e a consequente ordem de bloqueio dos aplicativos em caso de descumprimento.

Com relatoria da ministra Rosa Weber, a ADIn 5.527 requer “a suspensão imediata e, ao final, a declaração de inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 12 da lei 12.965/14 (Marco Civil), que prevê sanções como ‘suspensão’ e ‘proibição’ a provedores, ao lado da interpretação conforme do art. 10, §2º, que dispõe sobre a disponibilização de conteúdo de mensagens mediante ordem judicial”.[1]

Por sua vez, a ADPF 403, relatada pelo ministro Luiz Edson Fachin, discute uma série de decisões judiciais que determinaram os chamados “bloqueios do WhatsApp”, objetivando a proibição de que novas decisões dessa natureza sejam proferidas, sob o argumento de que violariam direitos como a liberdade de comunicação e expressão, além do princípio da proporcionalidade, já que a suspensão do funcionamento do aplicativo por um magistrado, com efeitos para todo o país, afetaria não apenas os potenciais criminosos, como também o restante dos usuários.

À época, a controvérsia recaía, especialmente, sobre a constitucionalidade da determinação da quebra de criptografia de ponta-a-ponta, como analisamos profundamente em outra sede[2]. Fundamentalmente, as autoridades judiciais e policiais requeriam ao WhatsApp, no âmbito de investigações e ações criminais, o acesso ao conteúdo das comunicações entre usuários da plataforma, que, por sua vez, negava tal acesso sob o argumento de que, por razões eminentemente tecnológicas, não seria possível realizar a quebra da criptografia para interceptar uma conversa sem vulnerar todos a segurança dos demais usuários, especialmente por meio das chamadas backdoors. Como chegou a afirmar o ministro Fachin em seu voto na ADPF 403: “Não existe acesso apenas para as pessoas boas. Backdoor apenas para good guys não funciona”.[3]

No entanto, como alertamos anteriormente,[4] o descumprimento das decisões judiciais sob o argumento da impossibilidade técnica em razão da criptografia é apenas uma adição – robusta – aos fundamentos utilizados pelas empresas para se eximirem do cumprimento de ordens judiciais.

Antes da criptografia, em casos que vêm desde os embates com o BlackBerry Messenger (BBM), um dos argumentos utilizados era a impossibilidade do fornecimento do conteúdo das comunicações pelo impedimento jurídico de que as conversas estariam armazenadas em servidores localizados fora do Brasil, o que atrairia a necessidade de se observar os procedimentos morosos – e incompatíveis com a velocidade da Internet – de cooperação jurídica internacional, seja por meio de cartas rogatórias ou pelo MLAT, isto é, o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Brasil e os Estados Unidos. Dito diversamente: a primeira barreira alegada pelas empresas era jurídica, com a extraterritorialidade, e, depois, ganhou o reforço de um argumento de impossibilidade tecnológica com a criptografia.

Em seu voto na ADPF 403, o relator, ministro Luiz Edson Fachin, concluiu pela procedência da ação “para declarar a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto tanto do inciso II do art. 7º, quanto do inciso III do art. 12 da Lei 12.965/2014, de modo a afastar qualquer interpretação do dispositivo que autorize ordem judicial que exija acesso excepcional a conteúdo de mensagem criptografada ponta-a-ponta ou que, por qualquer outro meio, enfraqueça a proteção criptográfica de aplicações da internet”.[5]

Por sua vez, na relatoria da ADI, a ministra Rosa Weber entendeu pela constitucionalidade dos incisos III e IV do artigo 12, mas realizou interpretação conforme no sentido que “as penalidades de suspensão temporária das atividades e de proibição de exercício das atividades somente podem ser impostas aos provedores de conexão e de aplicações de internet nos casos de descumprimento da legislação brasileira quanto à coleta, à guarda, ao armazenamento ou ao tratamento de dados, bem como aos direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros, (b) ficando afastada qualquer exegese que – isoladamente ou em combinação com o art. 7º, II e III, da Lei 12.965/2014 – estenda a sua hipótese de incidência de modo a abarcar o sancionamento de inobservância de ordem judicial de disponibilização de conteúdo de comunicações passíveis de obtenção tão só mediante fragilização deliberada dos mecanismos de proteção da privacidade inscritos na arquitetura da aplicação.” É dizer: para a ministra, as sanções de suspensão e proibição não poderiam ser aplicadas como resposta à desobediência a uma ordem judicial, mas somente caso a empresa viole os direitos à privacidade e proteção de dados dos usuários.

Após os votos dos relatores, os julgamentos foram suspensos em razão do pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Naquele momento, o sentimento geral era de que prevaleceria o entendimento da impossibilidade de realização de bloqueios com fundamento no Marco Civil da Internet. Mas o status quo parece ter mudado.

Recentes decisões parecem anunciar mudança de entendimento

Nesse período de quatro anos, a conjuntura fática foi bastante alterada. Em um cenário de desinformação, discurso de ódio, atendados à democracia e à higidez do processo eleitoral, que culminou nos ataques antidemocráticos às sedes do Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, o STF foi instado a se manifestar e, em diversas ocasiões, acenou com uma possível mudança de entendimento em relação aos rumos do julgamento a ser retomado.

A título de exemplo, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu, em 2023, o aplicativo Telegram. Em sua justificativa para o bloqueio na Petição (PET) 9.935, o ministro recorreu precisamente ao art. 12, inciso III e ao art. 10, §1º, do Marco Civil. Conforme consta da decisão:

“O desrespeito à legislação brasileira e o reiterado descumprimento de inúmeras decisões judiciais pelo Telegram, – empresa que opera no território brasileiro, sem indicar seu representante – inclusive emanadas do Supremo Tribunal Federal – é circunstância completamente incompatível com a ordem constitucional vigente, além de contrariar expressamente dispositivo legal (art. 10, § 1º, da Lei 12.965/14). Dessa maneira, estão presentes os requisitos necessários para a decretação da suspensão temporária das atividades do Telegram, até que haja o efetivo e integral cumprimento das decisões judiciais, nos termos destinados aos demais serviços de aplicações na internet, conforme o art. 12, III, do Marco Civil da Internet”.[6]

Também em 2023, a corte rechaçou o argumento da necessidade de cooperação jurídica internacional, por ocasião do julgamento da ADC 51, concluindo pela “possibilidade de solicitação direta de dados e comunicações eletrônicas das autoridades nacionais a empresas de tecnologia nos casos de atividades de coleta e tratamento de dados no país, de posse ou controle dos dados por empresa com representação no Brasil e de crimes cometidos por indivíduos localizados em território nacional”.[7]

Como afirmado em resumo elaborado pelo gabinete do ministro Gilmar Mendes, a letargia dos mecanismos de cooperação internacional dificulta a “apuração de delitos cometidos em ambiente virtual, como em casos de incitações públicas de violência entre Forças Armadas e instituições civis, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, ameaças contra autoridades públicas, terrorismo, pedofilia, além de difamação, calúnia e injúria”.[8]

Em seu voto-vista, “o ministro Alexandre de Moraes ressaltou que o MLAT deve ser aplicado quando for absolutamente impossível às autoridades judiciais brasileiras a obtenção direta dos dados. Assim, sendo possível a solicitação direta das informações com base no Marco Civil, esse deve ser o caminho a ser adotado, tendo o MLAT e as cartas rogatórias papel complementar. O ministro frisou, ainda, que pedidos de informações não podem ser negados sob a justificativa de que a sede dos provedores não está no Brasil, uma vez que as informações são transmitidas pelo sistema de telecomunicações brasileiro”.[9]

Com efeito, a decisão da corte não invalida os mecanismos internacionais, “mas deixa claro que, para apuração de crimes, os juízes brasileiros podem determinar a requisição de dados diretamente às empresas de tecnologia, conforme expressamente autorizado pelo art. 11 do Marco Civil da Internet. O STF ressaltou que as empresas de internet que ofertam serviços no Brasil devem estar totalmente submetidas à jurisdição nacional, independentemente do local em que decidem instalar seus data centers”.[10]

O que esperar da retomada do julgamento da ADPF 403?

Se o tema já era altamente controverso em 2020, agora se tornou um verdadeiro barril de pólvora. Os antecedentes mencionados no último item se somam à queda de braços entre Musk e o ministro Moraes em torno do possível descumprimento pelo X das ordens judiciais que determinam a suspensão de perfis de alguns usuários da plataforma. A discussão, antes travada no âmbito dos processos judiciais, foi levada por Musk para os fóruns virtuais – altamente politizados e polarizados – das redes sociais, com ataques pessoais a Moraes, às instituições e outras autoridades, culminando em inquérito para a apuração de eventuais crimes cometidos pelo empresário sul-africano.

O caso, por outro lado, descortina que a paciência do STF em relação à espera pela regulação das redes sociais pelo Congresso Nacional está em vias de se esgotar. A corte vinha adotando uma postura autocontida, deixando de pautar ações importantes em torno do Marco Civil, na expectativa de que a questão fosse enfrentada pelo Legislativo.

Mas isso não aconteceu: o fatídico PL das Fake News (PL 2630/2020) não apenas não foi votado, como o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), anunciou que um novo texto – escrito do zero – será discutido.

Em reação rápida, o Supremo pauta para julgamento a ADPF 403, e o ministro Dias Toffoli, relator do Tema 987, que discute a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil, divulga nota informando que encaminhará os autos para julgamento até o final de junho.[11]

Mas o que esperar da continuidade do julgamento da ADPF 403? Um trecho do voto do relator, ministro Fachin, ainda em 2020, pode dar uma pista. Em seu voto, ele declarou apenas parcialmente a inconstitucionalidade sem redução de texto do inciso III do art. 12 do Marco Civil, atendo-se, exclusivamente, à situação envolvendo os bloqueios oriundos do descumprimento de ordens atreladas à exigência de criptografia, privilegiando a liberdade de expressão e comunicação, além da privacidade dos usuários afetados. No entanto, seu entendimento não acaba com as demais possibilidades de bloqueio.

Segundo o ministro, “a suspensão das atividades do aplicativo ou mesmo sua proibição, mesmo diante da baixa institucionalidade, não caberá para o caso de descumprimento de decisão judicial de quebra de criptografia, mas para um quadro de violação grave do dever de obediência à legislação. Não é preciso minudenciar, mas é evidente que mesmo aqui a sanção deverá observar a proporcionalidade, tendo sempre em conta o direito do usuário de não ter suspenso seu acesso à internet. É certo, pois, que não cabe aos juízes que ordinariamente autorizam as interceptações telemáticas aplicar a sanção prevista no art. 12, III, do Marco Civil da Internet”.[12]

É possível, assim, que a corte acabe entendendo pela diferenciação entre os casos dos “bloqueios do WhatsApp” e os casos recentes do Telegram e agora do X, precisamente diante da existência de tal quadro de violação grave do dever de obediência à legislação. É dizer: comprovando-se que as empresas têm, deliberada e sistematicamente, se recusado a obedecer a legislação brasileira, cumprir ordens judiciais emanadas por autoridades competentes e desrespeitar a soberania nacional, os bloqueios, isto é, a suspensão ou até mesmo a proibição do funcionamento das atividades, acabariam se revelando como uma forma de garantir a preservação da autoridade das decisões e ordens judiciais, além de servir como uma forma de pressionar o Congresso Nacional a pautar e efetivar a urgente – e necessária – regulação das redes sociais.

Resta saber, afinal, qual será, a interpretação conferida aos incisos III e IV do art. 12: se continuará atrelada à criptografia em inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, se será tida como constitucional, mas restrita, por meio de interpretação conforme, aos casos de violação à privacidade e proteção de dados pessoais, ou se será, ainda, ampliada para legitimar suspensões e bloqueios de forma mais abrangente.

Fato é que o STF, atento aos diálogos institucionais que marcam a separação de poderes no Brasil, pauta o julgamento de temas sensíveis, sinalizando claramente para o Congresso Nacional a necessidade de regulação do tema, diante dos riscos que a desatualização e incompletude do Marco Civil da Internet representam para a democracia e, até mesmo, para a segurança jurídica das empresas, que demandam regras claras para estruturar seu funcionamento no Brasil.

Parece que o tiro de Musk saiu pela culatra.

*

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade única e exclusiva do autor.

[1] MANSUR, Felipe. ADIn 5.527 E bloqueios: um problema na redação da lei ou na sua interpretação?. Disponível em: <https://bloqueios.info/pt/adi-5527-e-bloqueios-um-problema-na-redacao-da-lei-ou-na-sua-interpretacao/> Acesso em 11 abr. 2024

[2] AFFONSO, Filipe José Medon. A criptografia na era dos bloqueios do WhatsApp: uma análise segundo a metodologia civil-constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 299-324. E-book. Disponível em: <https://www.academia.edu/38974981/A_Criptografia_na_Era_dos_Bloqueios_do_WhatsApp_-_Uma_an%C3%A1lise_segundo_a_metodologia_civil-constitucional> Acesso em 11 abr. 2024.

[3] https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF403voto.pdf

[4] MEDON, Filipe; FERRARI, Isabela. Bloqueios de aplicativos: o que realmente está em jogo na ADIn 5.527 e na ADPF 403 é o direito à criptografia de ponta-a-ponta. Migalhas, 19 mai. 2020. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/327241/bloqueios-de-aplicativos–o-que-realmente-esta-em-jogo-na-adin-5-527-e-na-adpf-403-e-o-direito-a-criptografia-de-ponta-a-ponta> Acesso em 11 abr. 2024.

[5] https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF403voto.pdf

[6] https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/DespachoTelegram1.pdf

[7] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15357625435&ext=.pdf

[8] https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/briefingGabineteADC51.pdf

[9] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=502922&ori=1

[10] https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/briefingGabineteADC51.pdf

[11] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=531871&ori=1

[12] https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF403voto.pdf