A litigância em torno do fornecimento de medicamentos não é algo recente. Se por um lado temos cidadãos em busca de seu direito à saúde previsto constitucionalmente e o avanço constante da medicina e da indústria farmacêutica, por outro, temos o Estado (compreendendo-se neste termo todas as esferas de governo – União, estados, Distrito Federal e municípios) com seus respectivos orçamentos e políticas sociais e econômicas, que devem ser otimizados para melhor qualidade e eficiência do seu uso.
Para tanto, o Sistema Único de Saúde (SUS), referência mundial de assistência básica e garantia de acesso à saúde e medicamentos essenciais, sempre é (e deve ser) o norteador da repartição das responsabilidades quanto ao tema.
Medicamentos aprovados pela Anvisa e padronizados pelo SUS são em regra fornecidos por meio de programas de assistência farmacêutica, respeitados os parâmetros e requisitos por eles estabelecidos. Quando judicializados, há em regra solidariedade entre os entes da federação, mas o Juízo oficiante deve respeitar a repartição das competências aferidas pelo SUS. Foi este o entendimento adotado no julgamento do tema 793[1] sob o rito de Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal (STF), conforme a seguinte tese: “Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.
De outra feita, também entendeu o Supremo Tribunal Federal, no tema 500[2] de Repercussão Geral, que os entes governamentais, em regra, não podem ser compelidos judicialmente a fornecer medicamentos não registrados pela Anvisa, tampouco medicamentos experimentais. O devido registro visa proteger a saúde pública de experimentos ineficientes, evitar gastos orçamentários com fármacos sem comprovação científica, bem como o controle de preços.
Por seu turno, o Plenário da Corte Constitucional também foi instado a decidir no Tema 1.161[3] da Repercussão Geral sobre a responsabilidade do Estado no fornecimento de fármaco que, embora não possua registro na Anvisa, tem sua importação autorizada pela mesma agência. Neste caso, foi fixada a tese de que excepcionalmente o Estado pode ser compelido a fornecer o medicamento, desde que haja comprovação dos seguintes requisitos:
Incapacidade econômica do paciente,
Imprescindibilidade clínica do tratamento, e;
Impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS.
Do mesmo modo, ainda está pendente de julgamento o Tema 6[4] da Repercussão Geral, em que se discute a obrigação de o Estado no fornecimento de medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo.
O grande problema surge quanto aos medicamentos aprovados pela Anvisa, mas não incorporados aos SUS. Nestes casos, a despeito da discricionariedade dos entes federados na utilização do seu orçamento e no fomento de suas políticas públicas, os Tribunais Superiores têm tido papel primordial para fixação de diretrizes quanto à competência no seu fornecimento, tanto aos cidadãos, quanto às esferas de governo.
Quanto ao tema, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o mérito do Incidente de Assunção de Competência 14[5] no Conflito de Competência 187.276/RS, fixou as seguintes teses vinculantes quanto à competência para interposição de ações judiciais nessas hipóteses:
Fixou a competência do juízo de acordo com os entes contra os quais a parte autora elegeu demandar;
Não permitiu que magistrados invoquem as regras de repartição de competência administrativas do SUS para fins de alteração ou ampliação do polo passivo indicado pela parte no momento da propositura ação, mas tão somente para fins de redirecionar o cumprimento da sentença ou determinar o ressarcimento da entidade federada que suportou o ônus financeiro no lugar do ente público competente,
Consignou que o conflito de competência não é a via adequada para discutir a legitimidade ad causam, à luz da Lei n. 8.080/1990, ou a nulidade das decisões proferidas pelo Juízo estadual ou federal, questões que devem ser analisada no bojo da ação principal; e, por fim,
Definiu que não cabe ao Juízo estadual, ao receber os autos que lhe foram restituídos em vista da exclusão do ente federal do feito, suscitar conflito de competência (Súmula 254 do STJ).
O Supremo Tribunal Federal afetou o tema sob o rito de Repercussão Geral, no Tema 1.234[6], a fim de definir do ponto de vista constitucional a legitimidade passiva nas ações judiciais de fornecimento de medicamentos registrados na Anvisa, mas não incorporados ao SUS.
O Plenário Virtual do STF referendou a liminar concedida na tutela provisória incidental[7] requerida no âmbito do Tema n. 1.234 do STF a fim de fixar parâmetros para a atuação do Poder Judiciário até o julgamento definitivo do Tema 1.234 da Repercussão Geral.
Com isso, afirmou que em demandas judiciais cujo objeto envolver medicamentos ou tratamentos padronizados, o polo passivo deve observar a repartição de competências estruturada no SUS, mesmo que isso acarrete o deslocamento de competência, sem prejuízo da concessão de tutelas cautelares de urgência ainda que anteriores ao deslocamento, se assim o caso exigir. Já nas ações judiciais que envolvam medicamentos não incorporados ao SUS, a competência deve ser do Juízo, estadual ou federal, indicados pelo cidadão, vedando-se, até o julgamento definitivo do Tema 1.234 da Repercussão Geral, a declinação da competência ou inclusão da União no polo passivo.
A fim de se evitar insegurança jurídica, foram impostos limites para aplicabilidade desses parâmetros: os processos não podem ter sentença prolatada e aqueles com sentença prolatada até a data da decisão (17 de abril de 2023) devem permanecer no ramo da Justiça do magistrado sentenciante até o trânsito em julgado e respectiva execução. No mais, foram mantidas as determinações de suspensão nacional de processos na fase de recursos especial e extraordinário.
Com isso, o Superior Tribunal de Justiça determinou nos autos do Conflito de Competência 187.276/RS o sobrestamento do Recurso Extraordinário até o julgamento definitivo do Tema 1.234.
Por se tratar de tema complexo, o STF, paralelamente, criou uma comissão especial sobre a estrutura de financiamento de medicamentos pelo SUS e a judicialização do tema, a fim de promover uma discussão entre os entes da federação e a sociedade, formada por representantes da União, membros indicados pelo Fundo Nacional de Saúde, pelo Conselho Nacional de Saúde, pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS (Conitec) e pela Anvisa, além de representantes dos estados e dos municípios.
Espera-se encontrar uma solução consensual sobre a questão, especial e principalmente por ser de relevante interesse público e social. E, não só a população, mas também as políticas sociais e econômicas na área da saúde e os respectivos orçamentos públicos serão mais bem atendidos e geridos com a definição desses parâmetros.
O Supremo Tribunal federal deve reafirmar a jurisprudência para, a despeito da solidariedade dos entes federados na promoção da saúde, atender à repartição de competências e descentralização constitucionalmente previstas, por se mostrar o melhor caminho ao interesse da sociedade.
Não obstante, deve se atentar à atribuição do Ministério da Saúde e, consequentemente, da União, no que concerne a novos medicamentos incorporados ao SUS. Até a solução definitiva do tema, os precedentes citados e a tutela provisória concedida nortearão a Administração Pública e os órgãos judicantes nas respectivas ações judiciais.
[1] RE nº 855.178 ED, Rel. Min. Luiz Fux, Rel. p/ Acórdão Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe 16.04.2020.
[2] RE nº 657.718, Rel. Min Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 09.11.2020.
[3] RE n.º 1.165.959, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 22.10.2021.
[4]RE nº 566.471 RG, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe 07.12.2007.
[5] IAC no CC nº 187.276/RS, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, Dje 18.04.2023.
[6] RE nº1.366.243 RG, Rel. Min. Presidente Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe 13.09.2022.
[7] RE nº 1.366.243 TPI-Ref, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 25.04.2023.