A Resolução 245 do Conanda e o dever de cuidado das empresas provedoras

  • Categoria do post:JOTA

Após um amplo processo de debates com especialistas e reflexões advindas da necessidade de enfrentamento e prevenção às violências no ambiente digital, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) publicou, em 5 de abril de 2024, a Resolução 245, que dispõe sobre a promoção e a proteção dos direitos de crianças e adolescentes no ambiente digital.

A norma representa um avanço no que diz respeito à garantia dos direitos da criança e do adolescente com absoluta prioridade no Brasil, prevista no artigo 227 da Constituição Federal.

Para deliberar sobre o tema, o Conanda considerou o arcabouço legislativo do país relacionado às várias questões envolvidas, como a própria CF, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Marco Legal da Primeira Infância, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

Também considerou os conteúdos do Comentário Geral 25 sobre os direitos de crianças e adolescentes no ambiente digital e do Comentário Geral 14 sobre o melhor interesse de crianças e adolescentes, ambos emanados pelo Comitê dos Direitos da Criança da ONU, em diálogo com a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, que possui status constitucional no país (Decreto 99.710/90).

Desta forma, a leitura sistemática e a implementação desse arcabouço legal, de forma a garantir uma correspondência com as emergências geradas pelo ambiente digital, constituem o desafio enfrentado pela Resolução, que parte da premissa de que as tecnologias digitais são essenciais no mundo atual e proporcionam diversas oportunidades para a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes, mas também impõem riscos de violações, exploração e abusos.

No que diz respeito, por exemplo, à experiência de navegação de crianças e adolescentes em plataformas digitais, relevante destacar que, muitas vezes, está condicionada à exploração comercial dos dados dessas pessoas e à propagação de ferramentas que visam mantê-las engajadas no consumo de informações, eventualmente ampliando o acesso a conteúdos violentos, à cooptação para o extremismo e à exposição para situações de abuso e exploração sexual.

A esse respeito, notórias revelações de ex-funcionários das maiores plataformas utilizadas por crianças e adolescentes brasileiros não deixam dúvidas sobre a pouca atenção que se têm despendido para a garantia de direitos desse público por parte das empresas que, mesmo cientes dos altos riscos, vêm priorizando seu modelo de negócio, em detrimento da defesa do melhor interesse e dos direitos de crianças e adolescentes.

Daí a Resolução reforçar a responsabilidade compartilhada pela garantia dos direitos da criança e do adolescente prevista no artigo 227 da CF ao asseverar que as autoridades públicas, as famílias e toda a sociedade, incluindo as empresas provedoras de produtos e serviços digitais, devem zelar por esta garantia também no ambiente digital.

Reforça, assim, um compromisso coletivo e convoca as empresas fornecedoras de produtos e serviços digitais a cumprirem seu dever de cuidado com a devida diligência, inclusive por meio da publicação anual de relatórios de avaliação de risco, de auditorias independentes e de relatórios de transparência.

Além disso, a Resolução visa garantir, em quaisquer decisões de negócios, o melhor interesse e a garantia de direitos de crianças e adolescentes, dever imposto a toda a sociedade, conforme determinado pelo art. 227 da CF e pelo ECA em seus artigos 4º, 18 e 70. O ECA também prevê, em seu artigo 71, que as crianças e os adolescentes têm direito a “produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”.

Disso extrai-se que as empresas responsáveis pelo desenvolvimento de produtos e serviços utilizados por grupo social devem realizar esforços para incorporar salvaguardas que garantam a proteção e efetivação dos direitos desses indivíduos. Alinha-se tal disposição ao previsto no inciso I, do artigo 6º e o artigo 8º do CDC, que consagram o direito dos consumidores à proteção contra os riscos provocados pelo fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos.

A Resolução interpreta o arcabouço legislativo pátrio à luz dos direitos da criança e do adolescente, os quais, importante ressaltar, não ocupam lugar trivial no ordenamento jurídico brasileiro. Com efeito, a proteção integral e a garantia de direitos com absoluta prioridade fixada na CF, alinha-se à Convenção dos Direitos da Criança, que, em seu artigo 3.1, determina que todas as ações relativas à criança devem considerar primordialmente o seu melhor interesse.

O conceito de “melhor interesse” é detalhado no Comentário Geral 14 do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, devendo ser compreendido: i) como um direito das crianças e adolescentes a terem os seus interesses considerados primordialmente; ii) como uma regra hermenêutica segundo a qual, havendo uma norma jurídica aberta a mais de uma interpretação, deve ser adotada aquela que melhor satisfizer os interesses das crianças e adolescentes envolvidos no caso concreto; e iii) uma regra procedimental a ser observada nos processos decisórios, os quais devem incorporar uma análise acerca dos potenciais impactos da decisão a ser tomada sobre esses indivíduos.

Ainda sobre a responsabilidade compartilhada, a Resolução dedica o Capítulo V ao “dever de cuidado e das responsabilidades das empresas provedoras de produtos e serviços digitais”, determinando que tais empresas devem envidar esforços e zelar para que as necessidades de crianças e adolescentes sejam observadas desde a concepção, o desenvolvimento e ações de comunicação de seus ambientes e sistemas.

Além disso, prevê a responsabilidade de identificação, avaliação, prevenção e mitigação, com a adoção de medidas de responsabilização, diante de qualquer forma de abuso, violência, discriminação, capacitismo e difusão de discurso de ódio e desinformação, devendo disponibilizar e divulgar amplamente canais de fácil acesso e em linguagem simples para escuta, diálogo e recebimento de denúncias de conteúdos nocivos ou ilegais.

Assim, alinhada à gramática dos direitos de crianças e adolescentes do ordenamento positivado, a Resolução enfatiza a importância de uma abordagem proativa por parte das empresas desde o design de seus produtos e serviços, até mesmo com a disponibilização e aprimoramento de mecanismos de mediação parental e verificação etária.

A garantia dos direitos das crianças e adolescentes por design dos produtos e serviços em ambientes digitais é, inclusive, indicada no inciso X do artigo 3º como um princípio que deve reger as decisões e a efetivação dos direitos da criança e do adolescente no ambiente digital, o que significa que Estados e agentes privados devem considerar sempre, em primeiro lugar, o melhor interesse da criança no ambiente digital desde o desenvolvimento e concepção de produtos ou serviços.

No contexto das redes sociais, a Resolução informa o dever das empresas provedoras de ambientes e serviços digitais de priorizarem, em seus sistemas, ferramentas, termos de uso, equipes e recursos de moderação, o controle efetivo de conteúdos ilegais ou inadequados que possam envolver ou ser direcionados para crianças e adolescentes.

Em seu artigo 6º, a Resolução determina que as crianças e adolescentes têm o direito à proteção com absoluta prioridade contra todas as violações de direitos relacionados aos riscos de conteúdo, contrato, contatos e condutas de terceiros que possam colocar em risco sua vida, dignidade e seu desenvolvimento integral, exemplificando riscos como discurso de ódio, exploração comercial, abuso sexual, incitação ao suicídio e à automutilação e publicidade ilegal.

Destaca-se que a Resolução aborda diversos conceitos e direitos importantes para a garantia de um ambiente digital que seja capaz de promover direitos e prevenir riscos, como a “conectividade significativa”, a “autodeterminação informativa”, a liberdade de expressão e também o direito à “informação íntegra”. Ainda, equiparou os dados pessoais de crianças e adolescentes a dados pessoais sensíveis, terminando com qualquer dúvida quanto à interpretação da LGPD à luz dos direitos das crianças e adolescentes.

Também elucidou que dados pessoais desse grupo social não devem ser usados para fins comerciais, como segmentação mercadológica e direcionamento de publicidade, entre outros, em uma continuidade e ampliação do debate iniciado na Resolução 163 também do Conanda, que dispõe sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente.

Por fim, no sentido de aprofundar as ações necessárias para a implementação de seu conteúdo, previu-se, ainda, a elaboração de uma Política Nacional de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente no ambiente digital em até 90 dias da sua publicação.

Em âmbito internacional, percebe-se uma proliferação de legislações, iniciativas e debates que visam proteger o melhor interesse de crianças e adolescentes em todas as etapas de desenvolvimento de plataformas digitais, bem como garantir o reconhecimento de crianças e adolescentes como pessoas autônomas e protagonistas de suas experiências na internet, como o Online Safety Act, do Reino Unido, a Lei de Proteção à Juventude, da Alemanha e o Online Safety Act, da Austrália. No Brasil, as principais discussões se dão em torno do PL 2630/2020 e do PL 2628/2022.

Nesse contexto, a Resolução 245 é um primeiro – mas muito importante – passo dado pelo Conanda para a implementação de medidas concretas para enfrentar a exploração comercial e os desafios da proliferação de ódio e conteúdos violentos em redes sociais, para o desenvolvimento de um ambiente digital voltado para o melhor interesse de crianças e adolescentes, em uma defesa inegociável dos direitos destas e das futuras gerações.