O Navio de Teseu é um famoso paradoxo da história das ideias.
Ele tem origem em um relato feito pelo historiador grego Plutarco, no qual descreve que o navio do herói ateniense Teseu sobreviveu por séculos, pois as madeiras corroídas pelo tempo eram substituídas por partes novas, até que todas as madeiras tivessem sido substituídas. Assim descreve Plutarco:
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“O Navio no qual Teseu realizara a travessia juntamente com os demais deportados, e que o trouxera de volta são e salvo, era uma trirreme que os atenienses conservaram até a época de Demétrio de Falérios. Iam retirando as pranchas carcomidas e substituindo-as por outras novas. Assim os filósofos, quando polemizam sobre o argumento da ampliação, citam esse barco como um exemplo controvertido, uns pretendendo que permanece o mesmo, outros que não.”[1]
O paradoxo do Navio de Teseu é um problema filosófico que questiona a identidade e a continuidade de um objeto que passa por sucessivas substituições de suas partes ao longo do tempo. Pensadores como Thomas Hobbes, John Locke e Gottfried Leibniz se ocuparam do paradoxo, cada um com solução diversa.
A pergunta fundamental é: se todas as partes de um navio forem gradualmente substituídas, ainda assim podemos considerá-lo o mesmo navio? Isso levanta questões sobre a identidade e a persistência de objetos ao longo do tempo, provocando debates sobre o que define a identidade de um objeto e quando essa identidade é perdida ou mantida.
A nossa Reforma Tributária faz lembrar o navio de Teseu.
Segundo o último parecer apresentado, o objetivo central da Reforma Tributária permanece sendo a “simplificação, justiça tributária e limitação ao aumento da carga sobre os contribuintes”. No entanto, do projeto original da PEC 45 não restou muito. Foram retiradas todas as “madeiras” que compunham a PEC original, substituindo-as por novas partes, que são muito diferentes, em sua natureza, daquelas presentes na proposta original.
Alguns exemplos são esclarecedores.
Em primeiro lugar, a PEC original previa a devolução parcial sobre os tributos incidentes na cesta básica, por mecanismos de transferência direta para os contribuintes de baixa renda. Agora, a proposta cria uma cesta básica nacional, que deverá levar em consideração peculiaridades regionais, e promover a alimentação saudável e adequada do ponto de vista nutricional. Da mesma forma, cria-se uma cesta básica estendida, com mais produtos, que terão redução da CBS e do IBS.
Ninguém questiona a importância de benefícios fiscais que reduzem o valor da cesta básica e a importância de uma alimentação adequada e balanceada. No entanto, uma pergunta se impõe: isso realmente simplifica o sistema tributário?
Em segundo lugar, a proposta original previa alíquota única para cada estado, com vedação expressa para quaisquer benefícios fiscais, ou regimes diferenciados ou favorecidos. A atual proposta, pelo contrário, cria dezenas de regimes específicos e tratamentos favorecidos. No primeiro caso, e apenas exemplificativamente, haverá regimes específicos para combustíveis e lubrificantes, serviços financeiros, operações com bens imóveis, planos de saúde, concursos de prognósticos, serviços de hotelaria, parques de diversão, parques temáticos, restaurantes, bares, aviação regional, serviços de saneamento e de concessão de rodovias, serviços de transporte coletivo de passageiros rodoviário intermunicipal e interestadual, serviços de transporte coletivo de passageiros ferroviário, hidroviário e aéreo. A lista poderia continuar.
No segundo caso, haverá tratamento favorecido para serviços de educação, de saúde, produtos hortícolas, frutas e ovos, serviços de saúde, dispositivos médicos e de acessibilidade para portadores de deficiência, medicamentos, produtos de cuidados básicos à saúde menstrual, bens e serviços relacionados a segurança e soberania nacional e segurança cibernética, a serem regulados por lei complementar.
Uma vez mais, ninguém questiona a importância de tais setores e de tais produtos. A questão que se impõe é: essa reforma realmente simplifica o sistema tributário nacional?
Não bastasse tudo que foi acima listado, o atual texto da PEC também cria exceções, com reduções que vão de 60% a 100% para o Prouni, serviços de saúde, dispositivos médicos, serviços de transportes de caráter urbano, semiurbano e metropolitano, produtos agropecuários, florestais, extrativistas, insumos agropecuários, alimentos para o consumo humano (inclusive com a previsão de tratamento diferenciado para sucos naturais). A lista segue. E é extensa. Encontramos exceções para produtos de higiene pessoal e limpeza consumidos por famílias de baixa renda, para produções artísticas, culturais, jornalísticas, audiovisuais, desportivas, comunicação institucional e bens relativos à segurança nacional. A lista poderia seguir, mas é recomendável interromper para não aborrecer, ainda mais, o leitor.
Uma vez mais, correndo o risco da repetição: não se desconsidera a importância dos produtos e setores beneficiados. Mas, novamente, a questão se impõe: essa reforma realmente simplifica o sistema tributário nacional?
Em terceiro lugar, a proposta original previa a extinção ou a limitação drástica dos benefícios concedidos à Zona Franca de Manaus, com compensações e transferências financeiras diretas para a Região Norte. A atual proposta mantém a Zona Franca de Manaus, como meio de desenvolvimento e de redução das desigualdades regionais previsto na Constituição. Sobre isso, não há o que questionar. No entanto, a pergunta novamente se impõe: manter a ZFM, sem resolver os problemas que dela advêm, realmente simplifica o sistema tributário?
Por fim, em quarto lugar, de uma lista que poderia ser muito mais longa, a proposta original previa o crédito financeiro amplo, sem quaisquer limitações, condições ou requisitos para o seu reconhecimento. A atual proposta determina que a lei complementar poderá exigir comprovação do pagamento dos impostos na etapa anterior para aproveitamento do crédito, excetuando expressamente bens de uso ou consumo pessoal.
O histórico nacional de limitações à tomada de créditos indica que, de um lado, condicionantes tendem a ser criadas pelo legislador e, de outro lado, restrições à utilização dos créditos tendem a ser fonte de dúvidas e discussões duradouras. Dois exemplos ilustram bem a situação: primeiro, o artigo 33 da Lei Complementar n. 87/1996, com a permanente prorrogação de prazos para o reconhecimento dos créditos de ICMS. Segundo, a interminável discussão, ainda não plenamente solucionada, sobre o conceito de insumos para fins de creditamento de PIS e Cofins.
Pode-se debater sobre a necessidade de limitação da tomada de créditos ou a necessidade de comprovação do pagamento para o reconhecimento de créditos como instrumento de combate às fraudes. O que não se pode deixar de debater é se essa reforma, neste aspecto específico, realmente simplifica o sistema tributário. A resposta parece ser negativa.
A pergunta, uma vez mais, se impõe: quanto resta da proposta original? Do “navio” original, quanto resta e quanto foi substituído? As substituições mantêm os fundamentos da proposta original? Ou se está diante de uma PEC que, de simplificadora, já não tem mais nada?
Importante deixar claro: não se questiona, nem se jamais questionou, a competência da Câmara dos Deputados e do Senado da República em, usando de suas prerrogativas e por meio de discussões e debates políticos, alterarem a proposta. Isso está compreendido como parte essencial de qualquer democracia representativa saudável.
O que se questiona é bastante diverso: como ficam os fundamentos que justificavam a aprovação da reforma tributária à época? Tanto os relatórios da Câmara dos Deputados quanto do Senado indicam que a finalidade principal da reforma segue sendo a da simplificação do sistema tributário. Depois de tantas mudanças, pode-se dizer, com confiança, que o sistema ora proposto é realmente mais simples?
Por mais discutível que fosse a proposta original, certo é que havia simplificação com alíquota única, variando apenas entre os estados. Agora, com uma plêiade de regimes diferenciados e favorecidos, ainda há simplificação? Certo é que havia simplificação com a vedação de benefícios fiscais na proposta original; e, agora, com dezenas e dezenas de benefícios sobre bens e setores, ainda há simplificação?
Uma última vez, a pergunta se impõe: as razões e os fundamentos para aprovar a reforma que estavam expostas na PEC original ainda se mantêm?
Ou, para usar a figura de Plutarco, se trocamos todas as madeiras que compõem um navio, ainda temos o mesmo navio? Se trocamos todos os pressupostos e premissas que fundamentavam a proposta de reforma tributária, ainda temos a mesma reforma?
Uma PEC que viria para simplificar, mas que cria regimes especiais; uma reforma que viria para simplificar, mas que cria uma transição que gerará confusão, incerteza e insegurança por quase uma década; uma reforma que viria para simplificar, mas que regula até mesmo sucos naturais, ovos e parques temáticos, e cria espaço para a limitação ao reconhecimento de créditos. Nada disso estava na proposta inicial. Devemos acreditar que, trocadas todas as madeiras daquela PEC original, seguimos discutindo a mesma coisa?
Assim como o Navio de Teseu, que inaugura o paradoxo, também a nossa reforma Tributária faz ecoar a velha pergunta: estamos mesmo diante da mesma reforma? Daquele “navio” original resta pouco ou quase nada.
Plutarco nunca ofereceu uma resposta ao paradoxo do Navio de Teseu. Se vivo fosse, ele saberia que, pelo menos com relação à nossa reforma tributária, um navio que tem todas as suas partes substituídas não é mais o mesmo navio.
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[1] PLUTARCO. Vidas paralelas. Vol. I. São Paulo: Paumape, 1991. p. 36.
* Agradeço ao Promotor de Justiça, do Ministério Público do Rio Grande do Sul – MPRS, Octavio Cordeiro Noronha, por todas as indicações e lições sobre as origens literárias da civilização ocidental.