A reforma tributária e o compliance cooperativo

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A história bíblica no Velho Testamento traz uma importante passagem, em que se descortina a fé incondicional do patriarca Abraão junto ao seu Deus e pode se considerar que, a partir daquele momento, daquela ação realizada por Abraão, ao oferecer a Deus o seu único filho em sacrifício, cujo nascimento já teria ocorrido no fim da vida do próprio pai, nasceu uma relação de confiança e um pacto inabalável que perdura até hoje entre aqueles que adotam inúmeras religiões dali advinda.

Mas o que esta relação inconteste de confiança entre Deus e Abraão poderia ter em comum com o compliance cooperativo e, mais ainda, com o tema da reforma tributária?

Vamos do início. O Estado absolutista das Idades Média e Moderna era representado pelo soberano investido por Deus de todo poder e merecedor de todos os direitos, a quem incumbia distribuir privilégios aos seus pares enquanto parcela de seu povo tinha apenas e tão somente o dever de sustentar todos os caprichos a partir do fruto do seu trabalho e dos tributos que lhes eram tirados à força e pagos, muitas vezes, com sangue.

Em oposição a este modelo, surge o Estado Liberal, fruto dos ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade, advindos da Revolução Francesa e se estrutura a partir do modelo econômico liberal proposto por Adam Smith. Abandona-se o modelo de Estado totalitário para aderir-se a um Estado mínimo cujas funções restringem-se à de legislar, executar as leis e administrar os conflitos.

Entretanto, tal ideal logo mostrou-se inviável, vez que a burguesia ascende à categoria de classe dominante, une o seu dinheiro às terras dos antigos nobres, dando origem a uma nova casta: os capitalistas. Ou seja, aquele Estado que pretendia a liberdade individual como regra acaba por gerar uma nova forma de exploração: a exploração do forte sobre o fraco. Impõe-se, neste contexto, o surgimento de um novo modelo de Estado.

As críticas ao Estado liberal surgem e tomam força a partir dos escritos de Marx e Engels. Trata-se da crítica socialista (cuja vertente mais extremada e não abordada por este trabalho é a vertente comunista). A ideia geral é a de que ao Estado incumbe uma função fiscalizadora, controladora das relações particulares. Isto ocorreu para que se evitasse a grande diferença social e econômica estabelecida pelo modelo liberal.

Assim, cria-se um modelo de Estado Democrático, cujo valor essencial não é mais o da liberdade absoluta, mas o da igualdade material.

A partir das duas grandes guerras, do holocausto, da massa de destruição que se abateu sobretudo na Europa, paira no ar o clamor por outra forma de relação entre Estados e entre o Estado e os seus cidadãos. A ideia de solidarismo, de direitos não mais unicamente individuais, mas sobretudo, humanos para dizer de uma forma mais ampla, traz à tona o valor revolucionário da fraternidade.

De Estado Democrático de Direito passa-se a Estado Social de Direito, e a sua maior característica reside na tutela do meio ambiente, dos direitos das gerações futuras, além, naturalmente, daqueles já conquistados anteriormente.

A estrutura de Estado, especialmente, no que tange à sua administração, atualmente, é verticalizada, hierarquizada, ainda assentada a partir de um ordenamento jurídico complexo, o qual ainda se pauta em ambiente conflagrado, bem como em substancial contencioso, especialmente no tocante à administração tributária federal.

A partir do momento que ao Estado é dado, em benefício do grupo social e em casos muito específicos determinados na própria Constituição Federal, o exercício de atividade econômica, e até porque tal atividade é essencial ao exercício da função administrativa, já que não é possível administrar sem contratar de algum modo, nota-se que ao Estado incumbe aprender a dialogar com o cidadão, dialogar com o empresário, dialogar com aquele que, de alguma forma, esteja do outro lado da relação jurídica que com ele se dá.

Neste contexto, a Administração Pública, que se pauta nos princípios da supremacia do interesse público e da legalidade, entre outros, acaba por se firmar longe de políticas que tragam o ambiente consensual para o seu núcleo, especialmente, no tocante ao vértice da relação Estado-particular (fisco-contribuinte).

Portanto, quando se trata de consensualidade na Administração Pública se está a falar numa nova forma de diálogo entre Estado e cidadãos. Na verdade, afasta-se a ideia de subordinação, assim como se dá nova significação à ideia de interesse público. Propõe-se, então, o diálogo entre Estado e Administrado.

Entendemos, neste desiderato, que não há como se pensar em reforma tributária, em simplificar tributos, em facilitar a vida do cidadão, sem que exista, como pano de fundo, a possibilidade de se estabelecer não só métodos consensuais para a solução de possíveis conflitos de maneira nacionalizada, mas, principalmente, que as questões advindas do novo modelo a ser estabelecido, futuramente, pela PEC 45, tenha por pilar inabalável um grande programa de compliance cooperativo, que abarque União, estados e municípios e seja implementado até mesmo administrativamente, a posteriori, por meio do Comitê Gestor da Reforma Tributária.

Montar um sistema de simplificação é pressuposto para se construir formas adequadas de os contribuintes cumprirem suas obrigações e o papel de um programa nacional entre União, estados e municípios que agregue o compliance cooperativo em suas políticas, hoje, com uma nova Administração Tributária que emerge e necessita da confiança incondicional, inabalável dos seus administrados, contribuintes, tal qual o pacto inconteste entre Deus e Abraão, é o norte que se precisa alcançar.

O modelo confiança deve estar atrelado a este unificado, simplificado e globalizado Estado tributário. O bom funcionamento de um modelo de conformidade cooperativa se fundamenta na manutenção de um sistema tributário simples (como é indicado no modelo da administração tributária de Singapura[1]), que facilite o cumprimento e reduza a possibilidade de burla ao sistema. Os sistemas complexos, ricos em benefícios fiscais e regras de exceção criam um espaço para a planificação fiscal agressiva e a fraude fiscal, com o aumento das incertezas na interpretação da legislação tributária.

Impende registrar, inclusive, que já existem iniciativas dentro da Administração Pública, mais precisamente no fisco federal, que demonstra o empenho no aprimoramento tanto na persecução do crédito tributário, quanto na relação fisco-contribuinte, dentre as quais podemos citar a formação de grupos de trabalho como a do Comitê Gestor para definição de diretrizes para o Programa de Conformidade Fiscal (Confia) da Secretaria Especial da Receita Federal[2].

Assim, apenas a título de contribuição e, para maior reflexão dos leitores, estamos diante de um desafio que precisa ser a grande virada para a simplificação e, para isto, entendemos que o suporte do compliance cooperativo, neste momento, seria crucial, mesmo que seja por meio de um programa piloto nacionalizado.

A construção deste suporte, em alinhamento ao futuro Comitê Gestor, já seria uma forma de a sociedade perceber a mudança de postura do Estado, principalmente, para evitar lides desnecessárias e trazer maior confiança a todos os interessados. E melhor, sem sacrifícios, tal como a passagem bíblica ora citada. Que o futuro seja de muito trabalho e com frutos colhidos pelo caminho, pois é isso que a sociedade espera do Estado e a recíproca é crucial para a melhoria destas relações. Aguardemos confiantes por mais ações incentivadoras precursoras em que a comunicação e participação sejam os grandes pilares.

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Este texto não reflete a posição institucional, mas sim uma análise individual por parte das autoras.

Este artigo é parte integrante da série “A reforma tributária por elas”. A série, sob a coordenação de Luiza Leite, faz parte do projeto “Mulheres no Tributário”.

[1] La administración tributária de Singapur – IRAS tiene entre sus pilares del Marco Estratégico de Cumplimiento “mantener un sistema tributario simple que facilite el cumplimiento para el contribuyente y reduzca la posibilidad de que pueda burlar al sistema” (OCDE, 2013A, p. 30).

[2] Portaria RFB nº 28, de 15 de abril de 2021.