A Proposta de Reforma Tributária recém aprovada pelo Senado Federal (PEC 45/2019) carrega muitos méritos pelo esforço na redução de complexidade e racionalização do nosso sistema. Se é certo que não é a reforma “ótima”, parece ser a reforma possível.
A intenção desse ensaio, entretanto, é alertar para uma alteração constitucional de impacto considerável no subsistema de tributação municipal que, até aqui, parece ter passado despercebida: a refundação da Contribuição para o Custeio do Serviço de Iluminação Pública (Cosip).
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A COSIP (art. 149-A da CRFB/88) é, desde a sua fundação pela Emenda Constitucional nº 39/2002, um tributo absolutamente peculiar. Antes dela, os Municípios e o Distrito Federal tinham por hábito custear o serviço de iluminação pública por meio de taxa (espécie do gênero tributo).
Ocorre que o serviço de iluminação pública não é específico (mensurado por unidade) e nem divisível (suscetível de utilização individual por cada contribuinte) – requisitos constitucionais para que fosse remunerado por meio daquele tributo (art. 145, III, da CRFB/88).
Essa circunstância levou o Supremo Tribunal Federal a consolidar a sua jurisprudência no sentido da inconstitucionalidade das taxas de iluminação pública (na Súmula 670, convertida a posteriori na Súmula Vinculante nº 41). Na prática, o serviço teria de ser financiado pela receita geral (e não vinculada) de impostos.
O “by-pass”, como registrado, veio justamente pela via legislativa-constitucional, com a instituição da COSIP que, não é propriamente taxa, nem imposto[1], nem contribuição tradicional. É, na verdade, nova espécie de tributo.
Se, na classificação doutrinária, a COSIP sempre teve ares de tributo “Frankenstein”, a versão aprovada do texto da PEC 45 pode desfigurá-la ainda mais.
É que, em seu Relatório Final, o Sen. Eduardo Braga acolheu a Emenda nº 719, do Sen. Laércio Oliveira, para conferir nova redação àquela citado art. 149-A da CRFB/88. Para melhor compreensão:
“Art. 149-A. Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio, a expansão e a melhoria do serviço de iluminação pública e de sistemas de monitoramento para segurança e preservação de logradouros públicos, observado o disposto no art. 150, I e III.
………………………………………………………………………..” (NR)
A primeira inovação é permissão para utilização das receitas da COSIP não só para o custeio, mas também para expansão do serviço de iluminação pública. Esta não surpreende porque só constitucionaliza recente entendimento do Supremo Tribunal Federal no Tema de Repercussão Geral nº 696 (RE 666.404).
A segunda e mais substancial inovação é que refunda o tributo, acrescendo-o a finalidade de custeio, expansão e melhoria de sistemas de monitoramento para segurança e preservação de logradouros públicos.
Na emenda acolhida, o Sen. Laércio Oliveira justifica a alteração considerando que “a possibilidade do uso da COSIP para financiar a iluminação pública e elementos tecnológicos correlatos pode ser determinante para que as cidades acompanhem as possibilidades de tecnologias aplicadas à gestão pública para torná-la mais eficiente e eficaz. (…) Aproveitar o espaço urbano para múltiplos fins, como a instalação de câmeras, sensores e lâmpadas no mesmo poste, é um exemplo concreto de como recursos públicos podem ser otimizados, ao mesmo tempo em que se reduz a poluição visual.”
O texto incorporado, com a devida licença, é ainda mais amplo que a sua própria justificação. Na prática, não se permite o uso de receitas da COSIP apenas para a instalação dos equipamentos de monitoramento, mas para o custeio e expansão de todo o sistema (sem circunscrevê-lo).
Com a redação atual, a norma inaugura dúvidas e certamente gerará contencioso, tanto judicial quanto no âmbito do controle de contas. Poderia a COSIP, por exemplo, custear o funcionamento e operação das próprias centrais municipais de monitoramento, considerando que também integram o sistema? E, no limite, pode ter sua receita remanejada para gastos com pessoal envolvido na operação de monitoramento?
O cerne do problema está na ausência de definição do que seja sistema de monitoramento. A alteração parece desconsiderar as diferenças estruturais entre os dois serviços que passariam a conviver na Cosip: um mais estanque (a iluminação pública) e outro mais dinâmico, responsivo e conectado com a segurança pública e patrimonial (o monitoramento).
Por via de consequência, é provável e lógico que a mudança conduza a majoração do valor do tributo no âmbito de municípios e Distrito Federal. Trata-se de uma nova destinação que não é alternativa, mas aditiva – expediente que acarreta, pela via do Direito Financeiro, aumento das despesas referenciais que devem calibrar a cobrança.
Caberá à Câmara dos Deputados, casa iniciadora para onde a matéria retornou, exercer o seu juízo de conveniência e oportunidade na análise dessa mudança que, apesar de parecer singela, impacta profundamente o desenho do referido tributo.
Seria importante que o legislador melhor delineasse o alcance da nova competência funcional da Cosip e avaliasse os seus impactos. Ou, alternativamente, a suprimisse, por absolutamente diverso que é este assunto do cerne da Reforma Tributária.
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[1] Alguns autores, como Roque Carraza (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 26ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 662). a consideram, sim, imposto.