A proposta de reforma integral do Código Civil brasileiro, atualmente em discussão no Congresso Nacional, tem sido apresentada como uma modernização necessária do sistema jurídico privado, à luz das transformações sociais e tecnológicas das últimas décadas. No entanto, por trás dessa retórica reformista, há uma omissão fundamental que compromete a legitimidade técnica e democrática do processo legislativo: a ausência de uma análise de impacto legal da proposta.
Não se trata de mera formalidade tecnocrática. A análise de impacto legal — embora não exigida pela Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) — representa uma boa prática normativa consolidada em democracias maduras, como a União Europeia, os Estados Unidos, Austrália e diversos países da OCDE.
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Seu objetivo é avaliar, com base em evidências empíricas, os custos e benefícios da alteração de normas jurídicas estruturantes, especialmente quando se trata de códigos que moldam as relações privadas e econômicas da sociedade. Quando reformas legais desse porte são feitas sem esse tipo de avaliação, o resultado tende a ser insegurança jurídica, ineficiência econômica e instabilidade institucional.
Essa crítica não é nova. Em estudo que publicamos em 2014[1], já alertávamos para os potenciais efeitos econômicos negativos do projeto de novo Código Comercial então em tramitação. Na ocasião, estimamos que os custos econômicos da mudança legislativa — em função da insegurança jurídica, da judicialização e da necessidade de adaptação institucional — poderiam superar R$ 120 bilhões. O diagnóstico era claro: a alteração ampla de um marco normativo sem análise de impacto legal representava um risco inaceitável para o ambiente de negócios e para a previsibilidade jurídica no país.
A situação presente repete, com contornos ainda mais graves, os mesmos erros do passado. A proposta de reforma do Código Civil não se limita a áreas específicas ou a atualizações pontuais. Trata-se de uma reformulação abrangente de institutos centrais do Direito Privado, como contratos, responsabilidade civil, sucessões, família e até sociedades. E, no entanto, não há qualquer estudo técnico que justifique a necessidade de tais alterações nem que estime seus custos econômicos, jurídicos e sociais.
O que é mais preocupante é que, se os potenciais custos da mudança do Código Comercial já eram elevados — como demonstramos naquele estudo —, a reforma do Código Civil, por sua amplitude e transversalidade, tende a gerar impactos ainda maiores. Afinal, o Código Civil rege as relações patrimoniais e pessoais da imensa maioria dos cidadãos, empresas e instituições do país. Alterá-lo de forma extensa, sem que se mensurem os efeitos disso sobre contratos em curso, planos patrimoniais, estruturas familiares e a jurisprudência consolidada, é submeter o país a um experimento jurídico de alto risco e custo imprevisível.
Não se ignora que o Direito deve acompanhar a evolução social, tecnológica e econômica. A revisão de normas pode ser desejável, e até necessária, em diversos contextos. Mas isso não autoriza a adoção de um voluntarismo legislativo dissociado de evidências. Alterações em marcos legais estruturantes devem ser precedidas de diagnósticos consistentes, estimativas de impacto e avaliação de alternativas — como se faz em qualquer política pública séria.
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O processo de elaboração da proposta do novo Código Civil também merece crítica sob o ponto de vista institucional. Formulada por uma comissão de juristas com escassa diversidade técnico-econômica, a proposta não foi submetida a consulta pública ampla, tampouco a um processo transparente de exposição de motivos, riscos e justificativas. Em democracias avançadas, reformas dessa natureza são acompanhadas por white papers, relatórios técnicos, consultas públicas e análises de impacto legal multidimensionais. Nada disso foi feito aqui.
Mais do que uma falha procedimental, essa omissão revela uma fragilidade estrutural na cultura legislativa brasileira, ainda excessivamente centrada em vontades individuais e em argumentos de autoridade, em detrimento de dados, evidências e avaliações empíricas. O custo dessa fragilidade é conhecido: judicialização excessiva, insegurança jurídica, entraves ao investimento e perda de eficiência institucional.
O Brasil precisa, sim, discutir a atualização de seu Código Civil. Mas essa discussão deve se dar com base em diagnóstico claro, evidências empíricas e projeção de impactos. Ignorar essas etapas é condenar a sociedade a arcar com os custos de reformas mal calibradas, como já alertávamos há mais de uma década. O que então era um risco setorial hoje se tornou uma ameaça sistêmica. É hora de aprender com os próprios erros — antes que seja tarde.
[1] Estudo projeta impactos econômicos do novo Código Comercial, Migalhas, 10/02/2014. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/amp/quentes/201598/estudo-projeta-impactos-economicos-do-novo-codigo-comercial