A quem caberá ‘errar por último’ na Justiça do Trabalho?

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Era dezembro de 1914 quando, durante sessão legislativa, Rui Barbosa, à época senador da República, proferiu uma de suas lições mais famosas: “Em todas as organizações, políticas ou judiciais, há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar”. Embora nada seja mais natural que admitir a falibilidade humana, ainda há quem torça o nariz para a expressão “errar por último”.

A problemática do erro judicial ganha, porém, maior dimensão quando um tribunal de instância ordinária passa a ter a última palavra para definir a aplicação do direito ao caso concreto.

Foi exatamente o que decidiu, recentemente, a 7ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST)[1]: cabe aos tribunais regionais do trabalho dar a última palavra na aplicação dos precedentes vinculantes firmados em Incidente de Recurso Repetitivo (IRR). A parte vencida foi impedida, no caso dos autos, de levar ao conhecimento do TST seu questionamento sobre a má aplicação do precedente obrigatório.

A prevalecer o novo entendimento – já incluído, aliás, em proposta para alteração do Regimento Interno do TST – os tribunais de origem assumirão a desafiadora tarefa de definir, em última instância, se um precedente vinculante firmado no TST se amoldará ou não ao caso concreto.

Do ponto de vista processual, significa dizer que não caberá agravo de instrumento para destrancar recursos de revista cuja tese contrariar precedente firmado em IRR. À parte sucumbente, restará a interposição de agravo interno para o próprio tribunal de origem contra decisão que nega seguimento ao recurso de revista.

Em que pese a surpresa de alguns, a decisão da 7ª Turma do TST não traz, a bem da verdade, uma novidade no Direito brasileiro. O Supremo Tribunal Federal (STF) acolheu esse entendimento, pela primeira vez, no AI 760.358/SE-QO, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, julgado no final de 2009[2].

Ancorado nos então vigentes artigos 543-A, 543-B e parágrafos do CPC/1973, o STF decidiu que não é cabível agravo de instrumento contra decisão que nega seguimento a recurso extraordinário quando a tese recursal contrariar precedente firmado em repercussão geral. Caso a parte se veja prejudicada por eventual equívoco na aplicação do precedente vinculante do STF, deverá se resignar a interpor agravo interno para o próprio tribunal de origem, que dará a última palavra acerca da questão.

A razão prática que fundamentou o acórdão do STF – e que certamente serviu de amparo ao acórdão da 7ª Turma do TST – nasceu da preocupação concreta dos ministros de evitar que as Cortes superiores fossem obrigadas a se manifestar inúmeras vezes sobre a mesma matéria.

Afinal, um sistema de precedentes que se pretenda funcional não pode depender apenas das Cortes Superiores. A racionalização objetivada pelo precedentalismo só será alcançada quando couber aos tribunais de origem dar cumprimento exauriente, nos casos concretos, de modo isonômico, aos paradigmas vinculantes estabelecidos na instância extraordinária.

A implementação da cultura de precedentes no âmbito do Direito do Trabalho perpassa, portanto, por um esforço coordenado para promover a conscientização entre os membros dos Tribunais Regionais do Trabalho. É essencial que juízes, desembargadores e servidores compreendam a função dos precedentes como mecanismos de promoção de uniformidade, previsibilidade e segurança jurídica, voltados não só à otimização do sistema judiciário, mas também ao fortalecimento da confiança pública nas instituições jurídicas.

Para tanto, os regimentos internos dos Tribunais Regionais do Trabalho devem ser atualizados, a fim de que designem o órgão colegiado responsável pelo julgamento dos agravos internos interpostos em face de decisões que deneguem o seguimento de recursos de revista com fundamento na aplicação de Temas Repetitivos. Sabemos, comparativamente, que cabe ao Órgão Especial o múnus de verificar a correção da aplicação de tese vinculante quando a Vice-Presidência do TST invoca Tema de Repercussão Geral para denegar seguimento a recurso extraordinário.

Aos leitores preocupados, ainda haverá, ao que tudo indica, uma porta de entrada no TST. Se houver recusa expressa do tribunal de origem para aplicação do precedente ao caso concreto, caberá à parte irresignada submeter a questão ao TST por meio de reclamação, com base no art. 988, I e II do CPC/2015, desde que não seja hipótese de distinção ou superação. Trata-se de exceção sistêmica à regra que veda o acesso à instância a extraordinária tendo em vista a aplicação concreta de precedentes obrigatórios. Percebe-se, de todo modo, que a via processual será estreita.

Por esta e outras razões, não se deve olvidar o papel vital desempenhado pelos advogados na normalização da cultura dos precedentes. Ao fundamentarem suas petições com base nos precedentes vinculantes, observarem os caminhos processuais adequados e destacarem sua relevância para os casos concretos, contribuirão para a conformação da jurisprudência, facilitando, inclusive, o trabalho dos órgãos jurisdicionais competentes.

Uma eventual virada jurisprudencial no sentido da decisão da 7ª Turma do TST representaria uma transformação no cenário de assoberbamento da Corte Superior Trabalhista[3], tal como vem ocorrendo no STF, com a diminuição significativa do acervo de recursos extraordinários e agravos. O TST teria mais tempo para se debruçar, com profundidade, sobre questões controvertidas e realmente relevantes em âmbito nacional.

O TST tem um encontro marcado com sua função constitucional de Corte de precedentes, hoje ainda distante do ideal. Para que as Cortes Superiores não precisem servir de terceira instância aos irresignados, é fundamental que os Tribunais Regionais estejam à altura da função institucional de controle da aplicação de precedentes aos casos concretos. Se cada engrenagem cumprir a contento seu papel no sistema de precedentes, não haverá mais preocupação sobre quem deverá “errar por último”.

[1] Ag-AIRR 12174-85.2015.5.15.0062, sob relatoria do Ministro Evandro Pereira Valadão Lopes, DEJT 12/04/2024. Segue trecho da ementa:

“ I. Na decisão em que se denegou seguimento ao recurso de revista, assentou-se que o caso destes autos apresenta identidade morfofuncional com o caso-piloto em que se fixou a tese vinculativa no Tema Repetitivo nº 16 (IRR-1001796-60.2014.5.02.0382) desta Corte Superior, com a qual o acórdão regional está em plena harmonia.

II. Nos termos do art. 1.030, I, “b” e § 2º, do CPC, aplicável supletivamente (art. 15 do CPC) e subsidiariamente (art. 896-B da CLT) ao Processo do Trabalho, cabe agravo interno no âmbito do Tribunal Regional – e não agravo de instrumento – da decisão que negar seguimento a recurso de revista interposto de acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Tribunal Superior do Trabalho exarado no regime de julgamento de recursos repetitivos”.

[2] No caso, o STF converteu o agravo de instrumento (contra decisão de inadmissibilidade de extraordinário) em agravo interno a ser decidido pelo tribunal de origem. Segue a ementa com destaques:

“Questão de Ordem. Repercussão Geral. Inadmissibilidade de agravo de instrumento ou reclamação da decisão que aplica entendimento desta Corte aos processos múltiplos. Competência do tribunal de origem. Conversão do agravo de instrumento em agravo regimental. 1. Não é cabível agravo de instrumento da decisão do tribunal de origem que, em cumprimento ao disposto no §3º do art. 543-B do CPC, aplica decisão de mérito do STF em questão de repercussão geral”.

A mesma posição foi igualmente acolhida nas Reclamações n. 7569/SP e 7547/SP, julgadas na mesma data (19/11/2009), sob relatoria da Ministra Ellen Gracie.

[3] Os números que mostram a realidade processual no TST continuam assustadores. O acervo de recursos pendentes de julgamento no TST só aumenta desde 2018, chegando a 593.486 processos pendentes em 2022 (último dado disponível).